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A cegueira involuntária















O blog do mês anterior foi o primeiro de uma série sobre como podemos acertar mais e atingir a excelência. No texto “Acertando antes de começar” foi abordado como nossa postura e forma de pensar influenciam nossas atitudes e, por conseguinte, nossas chances de erro e acerto.


Infelizmente, poucos refletem sobre essa etapa inicial, apesar dela ter forte influência nas demais, incluindo uma causa comum de erro de percepção, em que uma lesão não é percebida.


O fenômeno da “cegueira involuntária”, que envolve a relação entre a atenção e percepção visual, descreve o fato de olhar e não enxergar uma alteração, mesmo quando aparentemente óbvia. Pode ocorrer de três formas:


- A alteração não é notada, mesmo dentro do campo de visão rotineiro do exame.


- A alteração é notada, mas o olhar não permanece tempo suficiente para que seja reconhecida como uma alteração.


- A alteração é notada, mas não reconhecida conscientemente ou é interpretada de forma equivocada.


Um trabalho clássico sobre esse fenômeno complexo e ainda não totalmente conhecido foi publicado na revista Psychological Science em 2013. Nesse estudo com radiologistas especializados em imagem torácica foi colocada a figura de um gorila (seta amarela na figura abaixo) em uma das imagens axiais de tomografias computadorizadas do tórax com a indicação de pesquisa de nódulo pulmonar.



Figura retirada do artigo “The Invisible Gorilla Strikes Again: Sustained Inattentional Blindness in Expert Observers”, Psychological Science 24(9); 2013: 1848–1853. Trafton Drew, Melissa L.-H. Võ, and Jeremy M. Wolfe. Visual Attention Lab, Harvard Medical School, and Brigham and Women’s Hospital, Boston, Massachusetts.


Nesse estudo, 83% dos especialistas (20 em 24) não identificaram o gorila, mesmo quando o equipamento que mapeava a direção do olhar do radiologista demonstrou que a imagem do gorila estava na região que recebeu atenção do olhar do examinador, ou seja, ele comprovadamente viu, mas não enxergou.


Vários outros trabalhos referem falhas alarmantes na descrição de alterações relevantes, como o que referiu que 75% das fraturas de arcos costais não são relatadas em estudos tomográficos do tórax, e uma das razões é a “cegueira involuntária”.


E por que ela ocorre e como podemos evitar? Primeiramente, devemos considerar duas situações distintas: uma é a análise realizada fora da boa prática (com pressa, desatenção, etc.), que obviamente aumenta muito as chances de deixarmos passar uma lesão importante.


Outra situação é a “cegueira involuntária” passível de ocorrer com qualquer profissional, mesmo que ele seja um especialista competente e esteja analisando as imagens com atenção e concentração.


Uma das causas é conhecida como “satisfação da busca”, situação bem comum no dia a dia, em que após encontrarmos uma alteração que justifique o quadro do paciente ficamos satisfeitos e acabamos não percebendo outras alterações, que podem até ser mais evidentes, mais graves ou a real causa do problema.


Outra explicação é que nosso cérebro tende a não identificar o que não esperamos encontrar. No trabalho publicado na revista Psychological Science os especialistas esperavam encontrar as alterações pulmonares que conheciam e estavam concentrados principalmente na tarefa de detectar nódulos pulmonares; nenhum esperava encontrar a figura de um gorila no parênquima pulmonar, o que fez com ele não fosse enxergado. Esse fato também é uma das causas de erro na “satisfação da busca” - uma vez que achamos que já encontramos o problema não esperamos encontrar mais nada e, com isso, deixamos de ver outras alterações.


Por isso refletirmos sobre as questões colocadas no post anterior “Acertando antes de começar” é tão importante para evitarmos a “cegueira involuntária”:


1- Estamos realmente adotando a “boa prática”? Reflita no que foi colocado nos itens 1 e 4 do mês passado sobre a virtude moral e o mundo virtual (minha atitude contribui para evitar ou aumentar a chance de erros? Estou me distraindo demasiadamente com o celular e redes sociais?)


2- Reflexão se não estamos nos satisfazendo rapidamente com as alterações encontradas, sem perceber que o óbvio pode necessitar de uma olhada mais atenta e demorada, conforme ilustrado no item 3...


3- Por último, mas não menos importante, o item 2 - fugir das ideias preconcebidas e lutar contra o preconceito! Se começamos a analisar um exame com visão preconceituosa, automaticamente criamos uma expectativa (que o exame deve ser normal, que é fácil e rápido, etc.) que pode não corresponder à realidade. Essa atitude aumenta muito o risco de deixarmos passar uma lesão significativa porque induz a ficarmos cegos ao que não esperamos encontrar.


“A pior cegueira é a mental, que faz com que não reconheçamos o que temos pela frente.” Do livro “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago.



1 Comment


Giancarlo Domingues
Giancarlo Domingues
Mar 29, 2020

Excelente artigo! Os conceitos descritos os ouvimos ao longo da formação médica mas por vezes os ignoramos ou esquecemos.


Se não se sabe o que procura não se encontra.


Nunca deixar de olhar o resto do exame após encontrar algo que possa eventualmente justificar a queixa clínica.


Não mecanizar tanto a leitura radiológica a ponto de não pensar além do óbvio.

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