O jogo da sobrevivência
- 9 de jul.
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A última temporada de "Round 6" quebrou um novo recorde de audiência na Netflix, consolidando ainda mais o status da produção sul-coreana como um fenômeno global, com mais de 60 milhões de visualizações nos primeiros três dias.
Para quem ainda não conhece, a história gira em torno de centenas de pessoas desesperadas participam de jogos infantis mortais, onde a humanidade é gradualmente erodida pela competição implacável. Os participantes, identificados apenas por números, perdem sua individualidade em uma corrida pela sobrevivência onde a empatia se torna um luxo perigoso.
Uma das razões do sucesso da série é que a temática da perda da humanização é universal e ganhou outra dimensão com as redes sociais e plataformas de streaming. E cabe aqui a reflexão se a realidade da radiologia moderna apresenta paralelos inquietantes com essa distopia.
Em um ambiente onde metas de produtividade, pressão temporal e volume massivo de exames dominam o cotidiano, profissionais da saúde encontram-se presos em seus próprios "jogos" – onde a humanização do cuidado frequentemente se torna a primeira vítima do trabalho em forma de linha de produção, onde todos perdem – profissionais, pacientes e o próprio sistema de saúde.
E esse processo ocorre de forma tão insidiosa que nem percebemos, mas veja como esse processo de desumanização funciona gradativamente:
Esquecendo que existe uma pessoa por trás da imagem
Na série, os participantes rapidamente aprendem a ver os outros como obstáculos ou números. Na radiologia, um fenômeno similar ocorre quando o radiologista, sobrecarregado por centenas de exames diários, começa a enxergar as imagens apenas como dados a serem processados, não como representações de seres humanos únicos.
Esquecendo que existe uma pessoa por trás da interpretação das imagens
O grande volume de exames não deixa de ser reflexo de alto volume de atendimentos, em que o médico solicita exames de forma mecânica e padronizada (alguns têm a mesma solicitação padrão para todos – “dor e limitação funcional”), sem especificar qual a suspeita e omitindo informações importantes, como cirurgias ou procedimentos prévios, resultados histopatológicos, doenças pré-existentes, dificultando muito o trabalho do radiologista e do tecnólogo.
A distância física e emocional
A distância do paciente facilita a despersonalização: não vemos uma pessoa que sofre com a sensação de que pode cair a qualquer momento, de não saber se pode fazer atividade física, se vai continuar jogando profissionalmente ou não, ansioso diante da possibilidade de ter algo mais grave, se vai precisar operar... É só apenas mais um “joelhinho”.

O foco exclusivo na autodefesa fruto da insegurança
Assim como os guardas mascarados de "Round 6" veem os participantes apenas como números, e os participantes os enxergam como algozes, radiologistas podem desenvolver uma visão despersonalizada dos médicos solicitantes, tratando-os como meros "geradores de pedidos" em vez de colegas com suas próprias pressões e responsabilidades. Nem todos são "mais um médico fazendo pedidos desnecessários". É um profissional sobrecarregado, que precisa de um laudo claro, objetivo e que realmente o ajude a tomar a melhor decisão para seu paciente.
A comunicação unilateral prejudica todos:
Laudos técnicos demais podem gerar mais dúvidas que respostas
A falta de diálogo direto perpetua mal-entendidos
O médico solicitante se sente desvalorizado em sua expertise
O paciente sofre com possíveis atrasos ou condutas inadequadas

A Perspectiva do Técnico em Radiologia
Em "Round 6", a pressão temporal dos jogos força decisões desesperadas. Na radiologia, técnicos enfrentam uma pressão similar quando metas de produtividade se tornam mais importantes que a qualidade do exame e os atrasos parecem ser de sua exclusiva responsabilidade.
As consequências são devastadoras:
Qualidade diagnóstica comprometida: Sequências incompletas podem mascarar patologias importantes
Retrabalho: Exames inadequados precisam ser repetidos, gerando mais custos e exposição
Estresse ético: O profissional sabe que está comprometendo seu trabalho e o diagnóstico, mas não consegue ver outra forma de lidar com atrasos exponenciais
Assim como os participantes de "Round 6" são reduzidos a números em uniformes, técnicos em radiologia frequentemente se sentem transformados em máquinas de produção, medidos apenas por quantidades processadas.
A série é inquietante porque é inevitável que façamos algum tipo de comparação com as notícias da atualidade. Mas como a frase emblemática do protagonista no último episódio vale a reflexão...

E uma forma de mantermos o otimismo é lembrar que como tudo é cíclico, com a chegada da IA e a maior automação dos processos, torna-se crescente a necessidade por maior humanização e cuidado genuíno, que serão cada vez mais valorizados no futuro. Quem entender essa demanda vai estar à frente de quem vive apenas no modo sobrevivência.
"Você pode sobreviver, mas sobrevivência não é vida".




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