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Corra, Lola, corra!



Uma das melhores coisas que aconteceu no meu R1 de radiologia foi ter assistido a “Corra, Lola, Corra” (Lola Rennt), um filme alemão de 1998, dirigido por Tom Tywker. A história em si é muito simples: Manni esquece no metrô uma sacola com o dinheiro de um perigoso contrabandista para quem ele está trabalhando. Como ele só tem 20 minutos até a entrega, liga desesperado para sua namorada Lola, que sai correndo pelas ruas de Berlim na tentativa de recuperar o dinheiro.


Em resumo, de história é só isso mesmo, mas o filme trouxe uma estética incomum e ousada para época, como o visual “clubber” de Lola, a trilha sonora com música techno, a mistura de live action com grafismos, cortes rápidos, etc. conforme você pode ver no trailer do filme:

Vídeo do canal Cultive Arte.


A genialidade do filme está no fato de ser uma crônica sobre o TEMPO e um exemplo lúdico da "teoria do caos", baseada no fato de que uma pequenina mudança no início de um evento qualquer pode trazer CONSEQUÊNCIAS enormes e absolutamente desconhecidas no futuro, no que se baseia também o "efeito borboleta". Ao longo dos anos, esse filme, junto com outros acontecimentos, me ajudaram a sedimentar vários ensinamentos importantes para a prática profissional:


1- Um conceito mais profundo e abrangente de responsabilidade

Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês do século XX e pai do Existencialismo, argumentava que “quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas é responsável por todos os homens”. Como nossas escolhas refletem-se nos outros (ou por incluí-los, ou pelo fato de estarmos todos inseridos num mundo comum), devemos assumir a responsabilidade por cada uma de nossas escolhas, das menores às mais complexas, pois tudo está conectado.

E esse filme mostra exatamente isso: coisas insignificantes podem trazer consequências inesperadas. E um dos perigos da radiologia é a falta de conhecimento do que os nossos atos ocasionam, pois na maioria das vezes essa informação não chega ao responsável inicial de deflagrou a sequência de eventos. Por exemplo, um exame mal feito pode ocasionar tanto um diagnóstico errado (e o tecnólogo e o radiologista responsáveis provavelmente nem tomarão conhecimento), quanto gerar a necessidade de um complemento e o paciente pode sofrer um acidente a caminho da clínica; não se preocupar com o aprendizado dos residentes e estagiários, além do óbvio dano potencial de um diagnóstico errado com prejuízos para alguma pessoa, aumenta o número de profissionais despreparados, o que influencia o valor de mercado da especialidade e a entrada de outras especialidades ("se quer um exame bem feito faça você mesmo" ou coloque uma máquina...). E essas situações não teriam acontecido se o conceito de responsabilidade coletiva fosse mais forte que a inconsequência e a negação.


2- Agradar a maioria faz diferença?

Esse filme foi aclamado e ganhou vários prêmios ao redor do mundo, mas não foi bem aceito nos EUA pelo seu formato muito inovador que provavelmente “não agradaria”, já que "os americanos não gostam" de legendas, preferem as fórmulas conhecidas de sucesso, têm preguiça de pensar, vão ao cinema para se divertir e fugir da realidade e não para refletir sobre a vida, a repetição de diversas cenas no filme pode ficar "cansativo", música eletrônica não agrada todo mundo e muitos odeiam, etc. O filme ficou bem longe de Hollywood e do Oscar, mas se tornou cult no resto do mundo e depois acabou agradando vários cinéfilos americanos. Se “Corra, Lola, Corra” tivesse mudado para agradar o mercado americano não seria uma obra-prima. Aprendi antes da existência da mídias sociais que agradar todo mundo torna você mais um, com risco de no final não agradar ninguém, inclusive a si mesmo, que se priva de fazer coisas interessantes que agradariam as principais pessoas - as que se interessam, merecem e aproveitariam de verdade.


3- Você gosta de 'ter o que quer' ou busca o que 'precisa'?

Vejo hoje, mais de 20 anos depois, que continua sendo quase impossível fazer qualquer coisa fora do status quo, inclusive na área de ensino. Toda vez que um professor pensa em alguma coisa diferente do padrão vigente da época esbarra nesse tipo de comentário, do "ninguém gosta ou aguenta" (aulas com mais de 10 minutos, textos com mais de uma página, livros, receber críticas, pensar muito, achar que está perdendo tempo)... É sinal de inteligência e maturidade sair da zona de conforto do que a gente gosta ou quer e aceitar de bom grado o que a gente precisa no momento. “Corra, Lola, Corra” ousou ser diferente e fez diferença para quem se deu a chance de assistir sem pré-julgamentos e entrar no clima da narrativa sem comparação com outros filmes. É entender que nem tudo é só um filme, só uma aula, só um texto, seguir uma fórmula, mas é uma "vivência".


4- Resumo faz ganhar tempo?

O excesso de informação e de oferta de atividades criou uma falsa percepção de que precisamos o tempo todo "ganhar tempo" para conseguir dar conta de tudo. Muitos estudantes nunca leram um livro na escola achando que basta ler o resumo em algum site que explica o livro para que você consiga tirar uma boa nota na prova mesmo sem ter lido o livro em si. Ou então, já na faculdade ou formados, baseiam os estudos apenas em quadros, listas e tópicos resumidos. E nem sempre é má-fé, muitos realmente acreditam que assim vão conseguir ler mais coisas, ver mais casos e assistir mais aulas, absorvendo mais conteúdo. Esquecem que vivenciar, entender diferentes pontos de vista e refletir sobre uma situação traz um aprendizado que mil resumos não vão conseguir entregar. Contar a história de "Corra, Lola, corra" não serve de nada; reparar como as situações mudam drasticamente por pequenos detalhes é uma das graças do filme e é o que faz surgir os insights que você pode usar na sua própria vida, o que é intransferível e impossível de passar só contando a história.


5- Focar demais pode tirar o foco

Hoje em dia parece que qualquer coisa que a gente faça que não seja estritamente relacionado à profissão (trabalhar, estudar temas da área, participar de sessões e eventos, etc), cuidar do físico e se divertir no sentido de "se desligar" para aguentar o resto (?) é perda de tempo. Só que, os profissionais mais diferenciados são exatamente aqueles que expandem seus horizontes com vivências fora da sua profissão, o que pode ser através da leitura, artes, viagens, conversas, trabalho voluntário, etc. Tirar um tempo para vivências e experiências aproveitando o momento é o que faz com que seu tempo seja aproveitado e você precise perder menos tempo com os tecnicismos da profissão.


"O cinema é um modo divino de contar a vida".

Federico Fellini


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