O que o entendimento de “entidade” tem a ver com a forma como trabalhamos? Muitos evitam usar o termo “entidade” no dia a dia devido à sua conotação religiosa. De fato, algumas religiões cultuam seres espirituais que são denominados “entidades”. Entretanto, essa palavra tem significado muito mais amplo, sendo derivada do latim entitāte, que significa “ser” ou “ente” – é aquele ou aquilo que tem existência distinta e independente, podendo ser real ou imaginário.
Os povos antigos não conseguiam explicar os diversos fenômenos da natureza, como o sol e as variações climáticas, assim como situações do dia a dia, relacionando-as a divindades: para muitas civilizações, o sol e as tempestades, as boas e más colheitas e a fertilidade, por exemplo, eram relacionadas a entidades divinas. Com isso, não havia muito espaço para questionamentos – ou as entidades eram deuses (como o deus Sol) ou estavam relacionadas à sua vontade ou temperamento (como os trovões que eram manifestações da ira de Odin), o que acarretava uma postura passiva do cidadão comum em relação aos acontecimentos, com os questionamentos e análise racional restritos a grupos isolados que muitas vezes ganhavam destaque, tanto para o bem, como os conhecimentos matemáticos e astronômicos, que permitiram grandes construções e navegações em épocas sem nenhuma tecnologia, como para o mal, pois podiam ser interpretados como rebeldes ou hereges e banidos ou condenados à morte.
Foi a partir do movimento Iluminista no século XVIII, caracterizado pela centralidade da ciência e da racionalidade crítica, recusando o dogmatismo, que houve uma busca mais sistemática no esclarecimento das diversas “entidades”, construindo as bases do pensamento científico moderno: se o sol não é um deus, o que seria? Um planeta ou uma estrela? É mesmo o sol que gira em torno da Terra ou é a Terra que gira em torno do sol? Podemos estimar seu peso e distância? O questionamento leva à busca do conhecimento mais profundo sobre a entidade e o conhecimento leva ao entendimento das diversas situações relacionadas e como podemos nos adaptar e tirar o melhor proveito das diversas situações. Esse conhecimento baseado na busca pelo entendimento da "entidade sol" permitiu a construção de relógios solares nos tempos antigos e hoje sabemos que a exposição demasiada ao sol sem proteção causa danos à pele, ao mesmo tempo em que a falta de sol leva à deficiência de vitamina D e que devemos prevenir o efeito estufa. O pensamento científico nos coloca como um observador externo que tem curiosidade pela “entidade”. E isso afeta nossa postura: a noção da falta de conhecimento inicial nos coloca numa posição de humildade e o posterior entendimento de suas características mais profundas levam ao respeito por ela e ao desenvolvimento de formas mais eficientes de atuação. É como um efeito cascata: questionamento >> conhecimento >> entendimento >> humildade e respeito pela entidade >> maior eficiência.
Após alguns séculos de pensamento científico, as descobertas não têm aquela empolgação de antes. A novidade da nossa época é a internet, que permitiu o acesso rápido à informação, a globalização e as mídias sociais. A busca pelo conhecimento profundo, através de livros pesados, aulas e longas discussões embaixo da copa de árvores ou em cafés deu lugar a tutoriais rápidos e resumos, que permitem que o conhecimento seja muito mais veloz, embora muitas vezes superficial. Além disso, diversos estudos mostram que a sociedade atual tem uma maior tendência ao egocentrismo e narcisismo. Dessa perspectiva, o que predomina não é a curiosidade pelo entendimento da essência da “entidade”, mas sim em relação ao seu papel em relação ao indivíduo. Não interessa se o sol é uma estrela, sua massa ou composição, ou se estou contribuindo para o efeito estufa. O que importa é se vai fazer sol no fim de semana que eu quero ir à praia, se bate sol da manhã ou da tarde no apartamento que eu quero comprar e se o protetor solar que eu comprei vai mesmo evitar rugas.
Nesse contexto, se entendermos os exames radiológicos e o laudo como “entidades”, nossa postura em relação a eles é de respeito ou egocêntrica? Porque isso faz toda a diferença na nossa atitude, conforme os quadros abaixo:
Devemos entender que os exames e laudos são entidades, com características próprias e que representam uma pessoa, que é a prioridade. Tanto a execução do exame quanto o laudo estão além do nosso ego e de nossas questões pessoais, que devem ser tratadas separadamente e sem prejuízo para o paciente e as instituições.
“Nossa tecnologia passou a frente de nosso entendimento,
e a nossa inteligência desenvolveu-se mais do que a nossa sabedoria”.
Roger Revelle
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