Paciente de 24 anos do sexo masculino refere dor, aumento do volume do joelho esquerdo e sensação de instabilidade após jogo de basquete. Solicitadas radiografias e tomografia computadorizada (TC) do joelho.
Figura 1 (a-b): Radiografias simples do joelho esquerdo nas incidências anteroposterior (1a) e perfil (1b).
Figura 2 (a-c): Reconstruções tomográficas com a técnica MPR no plano coronal de anterior (2a) para posterior (1c).
Figura 3 (a-c): Reconstruções tomográficas com a técnica MPR no plano sagital.
Figura 4 (a-b): Reconstruções tomográficas no plano transversal com as técnicas MIP (4a) e 3D (4b).
Descrição dos achados
Figura 1 (a-b)’: Radiografias simples do joelho esquerdo nas incidências anteroposterior (1a') e perfil (1b’) mostrando avulsão da espinha tibial (setas brancas) associada a obliteração da gordura suprapatelar devido a derrame articular (seta azul).
Figura 2 (a-c)’: Reconstruções tomográficas com a técnica MPR no plano coronal de anterior (2a’) para posterior (2c’) mostrando avulsão da espinha tibial (setas brancas).
Figura 3 (a-c)’: Reconstruções tomográficas com a técnica MPR no plano sagital mostrando avulsão da espinha tibial (setas brancas) onde se insere o ligamento cruzado anterior (seta amarela) com o fragmento apresentando cominução em associação com derrame articular (setas azuis). O ligamento cruzado posterior (seta verde) se insere normalmente na porção posterior da tíbia.
Figura 4 (a-b)’: Reconstruções tomográficas no plano transversal com as técnicas MIP (4ª’) e 3D (4b’) mostrando melhor a cominução do fragmento avulsionado (setas).
Discussão
Os ligamentos cruzados são estabilizadores estáticos do joelho localizados entre o fêmur e a tíbia e possuem esse nome por cruzarem entre si, formando um “X”. O ligamento cruzado anterior (LCA) atua como estabilizador primário da translação anterior da tíbia em relação ao fêmur e, adicionalmente, como restritor à rotação interna.
O LCA apresenta duas bandas, uma anteromedial e outra posterolateral, está localizado anteriormente ao ligamento cruzado posterior (LCP) e tem trajeto diagonal, com origem na porção superior da face medial do côndilo femoral lateral e inserção na região intercondilar da tíbia, uma área considerada não-articular. No esqueleto imaturo as fibras do LCA se unem à cartilagem epifisária, enquanto no adulto se inserem diretamente no osso, em íntimo contato com a raiz anterior do menisco lateral. No centro da região intercondilar está localizada a eminência intercondilar, que consiste na confluência das superfícies articulares dos platôs tibiais e contém duas espinhas (ou tubérculos), uma medial e outra lateral (figura 5). Nessa região são encontradas 6 facetas que servem como sítios de inserção (“footprint”) dos ligamentos cruzados e dos meniscos (quadro 1):
Figura 5 (a-b): Anatomia óssea da região intercondilar da tíbia vista de cima (5a) mostrando os reparos ósseos mais importantes. Representação esquemática no plano transversal do joelho (5b) mostrando a localização dos sítios de inserção do LCA e sua relação com as inserções meniscais e do LCP.
Quadro 1: Inserções meniscais e dos ligamentos cruzados na tíbia.
Os cruzados são ligamentos intracapsulares (no interior da cápsula articular), porém extrassinoviais (fora da cavidade sinovial) (figura 6).
Figura 6 (a-b): Ilustração da anatomia articular do joelho com remoção do côndilo femoral medial (5a) e em visão medial (5b) mostrando a localização intracapsular e extrassinovial dos ligamentos cruzados. Modificado de https://musculoskeletalkey.com.
As roturas do LCA estão entre as lesões mais comuns do joelho e geralmente se manifestam como rotura completa do ligamento, o que costuma ocorrer principalmente durante a prática de esportes como futebol, basquete e esqui. As lesões do LCA frequentemente resultam em instabilidade que pode levar subsequentemente a lesões meniscais e condrais, osteoartrite precoce e limitação funcional.
O padrão das lesões do LCA tem relação com a idade, sexo e as variações na anatomia do joelho. As roturas das fibras ligamentares são observadas mais comumente nos adolescentes e adultos, enquanto pré-adolescentes têm maior incidência de fraturas por avulsão da inserção do LCA na eminência tibial. Isso ocorre porque na fise aberta a porção mais fraca é a eminência tibial osteocondral, o que faz com que essa região seja mais propensa a lesão. Entretanto, 40% das fraturas por avulsão do LCA ocorrem em adultos. A anatomia do joelho também influencia a maior ou menor propensão às fraturas por avulsão. Indivíduos com a região intercondilar mais estreita tendem a apresentar maior risco de rotura do LCA, embora no caso do esqueleto imaturo a fossa intercondilar estreita aumenta o risco de fratura por avulsão do LCA.
As fraturas da eminência intercondilar / espinha tibial são definidas como avulsões ósseas ou condrais no sítio de inserção dos ligamentos cruzados. Embora sejam consideradas lesões raras em relação à população geral, sua incidência tem aumentado devido à maior prática de esportes. Na população pediátrica e entre os adolescentes, principalmente entre os 8 e 14 anos, as fraturas por avulsão da espinha tibial correspondem a 2 a 8% das lesões nos joelhos avaliados por derrame articular.
Os mecanismos clássicos da lesão por avulsão do LCA são a hiperextensão forçada do joelho, o trauma direto sobre o fêmur distal com o joelho flexionado ou força rotacional (figura 7). O mecanismo do trauma também varia de acordo com a faixa etária: na criança a lesão geralmente é secundária à flexão forçada do joelho com rotação interna da tíbia e não costuma estar associada a outras lesões, enquanto no adulto a lesão costuma ocorrer em trauma de maior energia, como nos acidentes automobilísticos, com maior prevalência de outras lesões associadas.
Figura 7 (a-b): Ilustrações dos principais mecanismos de trauma das lesões por avulsão do LCA: rotação interna da tíbia em relação ao fêmur (6a) e hiperextensão (b). As áreas em vermelho na figura 6b representam as áreas de contusão óssea secundárias ao impacto do fêmur com a tíbia. Modificado de Emerg Radiol 20, 429–440 (2013).
A classificação mais utilizada nas fraturas por avulsão da eminência tibial é a classificação radiográfica de Meyers e McKeevers descrita em 1959, baseada em 3 tipos:
Tipo I – fratura sem deslocamento do fragmento
Tipo II – fratura em que a porção mais anterior da espinha tibial é avulsionada superiormente enquanto a porção posterior permanece unida ao platô tibial funcionando como uma dobradiça
Tipo III – fratura com deslocamento completo do fragmento que se encontra completamente destacado
Em 1977 Zaricznyj acrescentou o tipo IV, em que há cominução do fragmento, e houve subdivisão do tipo III por alguns autores (figura 8).
Figura 8: Classificação das fraturas por avulsão do LCA: no tipo I há mínimo deslocamento do fragmento, no tipo II há elevação do fragmento e nos tipos III e IV há completa separação do fragmento. O tipo IIIa está restrito à inserção do LCA e no tipo IIIb a fratura se estende além da área de inserção do LCA ou apresenta rotação. O tipo IV inclui componente rotacional ou cominução do fragmento. Modificado de Emerg Radiol 20, 429–440 (2013).
As avulsões do LCA podem estar associadas a lesão concomitante da substância ligamentar (o que ocorre em até 20% dos casos, variando desde edema, até frouxidão e rotura), a lesões meniscais e osteocondrais, contusão óssea e fraturas no platô tibial, sendo sua incidência também relacionada com a faixa etária. As lesões meniscais são mais frequentes nos pacientes com a fise fechada e nas fraturas mais complexas, enquanto as lesões osteocondrais associadas à lesão do LCA seriam mais frequentes nos pacientes com a fise aberta. Em um estudo com pacientes com avulsão da eminência tibial com idades entre 5 a 18 anos, 7% apresentavam lesão condral e em 4% foram detectados corpos livres intra-articulares. O acometimento do menisco lateral ocorre em cerca de 90% dos casos e do menisco medial em 10% dos casos de lesão meniscal, sendo a rotura longitudinal do corno posterior do menisco lateral o tipo de lesão mais frequente, seguida pela avulsão da raiz anterior do menisco lateral, o que equivale a uma meniscectomia funcional, com indicação cirúrgica.
Uma complicação das fraturas por avulsão do LCA é o encarceramento do menisco, que pode bloquear a redução fechada do fragmento ósseo e que ocorre em 26% das fraturas tipo II e em 65% dos casos de fratura tipo III, sendo também uma indicação de tratamento cirúrgico. O encarceramento pode ser do corno anterior dos meniscos medial ou lateral ou do ligamento intermeniscal (figura 9).
Figura 9: Imagem de RM no plano sagital de outro paciente mostrando avulsão da inserção do LCA (seta branca) com encarceramento do corno anterior do menisco (seta amarela). Modificado de J ISAKOS. 2023 Dec;8(6):404-411.
Embora a ressonância magnética (RM) não seja necessária para o diagnóstico na maioria dos casos, ela é útil na avaliação da integridade do ligamento e na detecção de outras lesões associadas que podem influenciar na conduta terapêutica, situações que ocorrem em 12 a 19% dos casos, com aumento progressivo da incidência de acordo com o aumento da faixa etária do paciente.
O aumento do número de exames de RM nos últimos anos levou à criação de uma nova classificação proposta por Green et al., que observaram que a utilização da RM alterava o grau da classificação tradicional de Meyers e McKeevers em 32% dos casos.
Tipo I – fratura sem deslocamento ou com mínimo deslocamento (< ou = 2 mm) do fragmento
Tipo II – fratura em que a porção mais anterior da espinha tibial é avulsionada superiormente com deslocamento > 2 mm e a porção posterior com deslocamento < ou = 2 mm
Tipo III – fratura com deslocamento da porção posterior do fragmento > 2 mm ou com encarceramento meniscal ou ligamentar ou com extensão da fratura para a área de carga do platô tibial medial ou lateral
O exame físico após o trauma agudo pode ser difícil pela dor e defesa, sendo importante a combinação do mecanismo do trauma, sintomas e testes clínicos feitos em conjunto com o joelho contralateral assintomático para comparação do grau de translação posterior da tíbia. Os testes mais utilizados são:
Teste de Lachman – realizado com o paciente em posição supina e o joelho em 15° de flexão com o examinador estabilizando o fêmur distal com uma mão, enquanto com a outra mão segura a tíbia por trás, aplicando uma força em direção anterior na tíbia. O teste é positivo quando produz uma translação tibial anterior aumentada em comparação com o joelho contralateral. É útil na fase aguda, mas pode deixar de fazer o diagnóstico em cerca de 13% dos casos. Quando realizado entre o 1º e o 7º dias após o trauma apresenta sensibilidade de 95% sendo considerado por muitos autores o melhor teste. Uma vantagem do teste de Lachman é o fato dele não ser afetado por lesões associadas.
Teste da gaveta anterior – realizado com o paciente em posição supina com o quadril flexionado a 45° e o joelho a 90° de flexão, com o pé em posição neutra. O examinador se senta no pé do lado afetado e segura a tíbia por trás enquanto palpa o platô tibial e os tendões isquiotibiais para ter conferir se estão relaxados, e aplica uma força em direção anterior na tíbia. O teste é positivo quando produz uma translação tibial anterior aumentada em comparação com o joelho contralateral. O teste da gaveta anterior pode ser afetado pela presença de lesões meniscais.
Teste do “pivot shift” – realizado com o paciente em posição supina com o quadril flexionado e abduzido a 30° em leve rotação medial e o examinador em pé ao lado do joelho que será testado. O examinador enlaça um braço ao redor da perna do paciente para fixá-la firmemente e flexiona o joelho do paciente a 90° enquanto aplica com a palma de sua outra mão uma rotação interna sobre a tíbia, tentando subluxar o platô tibial lateral. Enquanto mantém a força rotacional medial, o examinador começa a lentamente estender o joelho do paciente com a palma da outra mão aplicando uma força em valgo por trás da fíbula. Quando o joelho se aproxima da extensão máxima a tíbia volta ao lugar. Esse teste é positivo se a tíbia for reduzida ou se deslocar para trás em torno de 30 a 40° de flexão devido ao aperto da banda iliotibial. Isso pode produzir um som de estalo e, muitas vezes, o paciente descreve isso como uma sensação reconhecível de "ceder". O “pivot shift” pode ser encontrado em somente 35% dos pacientes com lesão aguda e pode ser diminuído quando há uma lesão do ligamento colateral medial e até ausente em lesões parciais do LCA. Assim como ocorre com outros testes para o LCA, a contração muscular protetora em uma situação aguda pode levar a um teste falso-negativo.
Os testes para avaliação do LCA também dependem da experiência do examinador e se são feitos sob anestesia, o que aumenta bastante a sua acurácia.
O tratamento das fraturas por avulsão do LCA é baseado no grau de deslocamento do fragmento. Os fragmentos não deslocados ou minimamente deslocados que reduzem com a redução fechada costumam ser tratados conservadoramente com imobilização em extensão completa (preconizada por quem acredita que na extensão o côndilo femoral lateral exerce compressão direta sobre o fragmento) ou 20° de flexão (preconizada por quem considera útil reduzir a força tênsil sobre o LCA). O controle radiográfico nesses casos é importante para acompanhar a evolução e a correta posição do fragmento. O tratamento das fraturas por avulsão tipo II ainda não é consenso, com alguns autores considerando válida a tentativa de redução fechada nos fragmentos com dobradiça mínima sem encarceramento meniscal, com imobilização por 4 a 6 semanas, sendo mandatório nesses casos controle semanal inicial para monitorização da posição do fragmento. Se a redução for inadequada ou houver novo deslocamento, assim como nos casos em que há deslocamento inicial > 5 mm ou lesões associadas é indicado o tratamento cirúrgico. Nas fraturas por avulsão tipo III o tratamento de escolha é a redução e fixação cirúrgicas, que podem ser feitas por cirurgia aberta ou artroscopia. O tratamento não cirúrgico nesses casos resulta em não-união, maior frouxidão residual e grande perda do arco do movimento.
Leitura sugerida
Salvato D, Green DW, Accadbled F, Tuca M. Tibial spine fractures: State of the art. J ISAKOS. 2023 Dec;8(6):404-411. doi: 10.1016/j.jisako.2023.06.001. Epub 2023 Jun 13. PMID: 37321295.
Zhang L, Xia Q, Yang R, Fan L, Hu Y, Fu W. Anatomical factors associated with the development of anterior tibial spine fractures based on MRI measurements. J Orthop Surg Res. 2023 May 12;18(1):357. doi: 10.1186/s13018-023-03836-z. PMID: 37173712; PMCID: PMC10182680.
Xu X, Wang H, Cui F, Guo F. Clinical effect of day case arthroscopic surgery in tibial-eminence fracture in adults using button plates. Front Surg. 2022 Sep 29;9:899438. doi: 10.3389/fsurg.2022.899438. PMID: 36248368; PMCID: PMC9559727.
Silva L, Bernal N, Tuca M, Espinosa M, de la Fuente G. A narrow intercondylar gap favours anterior cruciate ligament (ACL) rupture in patients with an immature skeleton. Rev Esp Cir Ortop Traumatol (Engl Ed). 2021 May-Jun;65(3):201-206. English, Spanish. doi: 10.1016/j.recot.2020.08.004. Epub 2021 Jan 15. PMID: 33455882.
Green D, Tuca M, Luderowski E, Gausden E, Goodbody C, Konin G. A new, MRI based classification system for tibial spine fractures changes clinical treatment recommendations when compared to Myers and Mckeever. Knee Surg Sports Traumatol Arthrosc 2019 Jan;27(1):86–92.
Leeberg V, Lekdorf J, Wong C, Sonne-Holm S. Tibial eminentia avulsion fracture in children - a systematic review of the current literature. Dan Med J. 2014 Mar;61(3):A4792. PMID: 24814913.
White, E.A., Patel, D.B., Matcuk, G.R. et al. Cruciate ligament avulsion fractures: Anatomy, biomechanics, injury patterns, and approach to management. Emerg Radiol 20, 429–440 (2013). https://doi.org/10.1007/s10140-013-1121-0
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