A residência médica em radiologia é um período precioso e único na vida profissional, mas apesar disso, a percepção de muitos é que ela é muito subaproveitada. E, infelizmente, a maioria só se dá conta disso analisando em retrospecto, depois que ela acaba, quando não tem mais como recuperar o tempo perdido, já que dificilmente teremos de volta 3 a 4 anos consecutivos quase que totalmente dedicados ao aprendizado. Depois dessa fase, mesmo que se continue estudando, teremos que conciliar com trabalho, família, filhos, etc., ou seja, esse momento de maior imersão com menos obrigações externas dificilmente pode ser recuperado.
Apesar desse senso comum de que "o residente não aproveita a residência", as causas são muitas e algumas variam de serviço pra serviço, de época e local. Mas existem 3 vilões menos óbvios e pouco falados que prejudicam muito o aprendizado que eu vou englobar dentro da ideais de uma alcateia:
1- O residente "alfa"
Você já deve ter ouvido falar da "personalidade alfa” para caracterizar aquelas pessoas com perfil mais dominante, que por seu carisma e personalidade forte acabam se tornando líderes de grupos. E não é raro encontrarmos a dinâmica de ter um “residente alfa” que "fala pelo grupo" e acaba influenciando os outros a seguirem as suas determinações. Só que não devemos esquecer que ele é apenas um residente como os outros, ele não é necessariamente um bom líder, tipo um Martin Luther King com ideais nobres, que vai conseguir verdadeiras melhorias que vão elevar o nível da residência. Em geral, ele está mais para o "líder do parquinho" ou o “dono da rua” de antigamente, aquela criança que sempre decide as brincadeiras e o que cada um deve fazer, apenas por ter personalidade mais forte, o que não implica em ser o melhor para todos. Na verdade, na maioria das vezes o “residente alfa” se revolta com determinações que seriam benéficas ao aprendizado, inflando os demais residentes a boicotarem diretrizes que seriam úteis, como ter cota de laudo, grupos de discussão de casos e apresentação de artigos, por exemplo, muitas vezes com ações extremamente rudes, como fazer todos os residente abandonarem o grupo de Whatsapp com o coordenador, não entregarem os demonstrativos dos laudos, não aparecerem em sessões, etc., não porque houve alguma coisa séria, como assédio, mas simplesmente porque ele é como aquele aluno que não quer fazer o dever de casa, nem copiar matéria, nem fazer prova. Por isso, quanto mais rápido cair a ficha que a residência é o melhor momento de se especializar e definir seu futuro profissional, mais fácil vai ser enxergar que não tem sentido desperdiçar muitas oportunidades apenas por achar que deve seguir um coleguinha cheio de razão e vontades.
2 - Acreditar que faz parte de uma matilha
Esse é um dos principais fatores que ajuda o "residente alfa" a se criar - a percepção equivocada do que é fazer parte de um grupo de residência. Amizade, ética, companheirismo, colaboração deveriam ser os valores básicos de um grupo, o que não significa que as pessoas devem perder sua identidade e simplesmente todos agirem da mesma forma, como uma matilha ou aqueles cardumes de peixe que todos fazem os mesmos movimentos. É nítido que os grupos onde os residentes são reconhecidos como indivíduos únicos, em que todos os staffs sabem o nome, características, qualidades e evolução de cada um, são os grupos de onde saem as pessoas que mais se destacam na profissão. Bem diferente daqueles anos em que os residentes são conhecidos apenas como “um residente” e o único que fica conhecido é o tal do “alfa”, mas não pelos motivos certos... Esse padrão de todos iguais seguindo o líder vem de um pensamento equivocado de que qualquer ação diferente de uma pessoa fora do padrão estabelecido por outro residente, que muitas vezes nem faz mais parte do grupo, apenas deixou aquele padrão de "herança", pudesse "prejudicar a imagem" dos demais. Dessa forma, os residentes passam a ter o funcionamento “em bloco”: ou todos aceitam ou ninguém aceita, ou todos apresentam ou ninguém apresenta, ou todos dão no máximo “x” laudos para não destoar, e por aí vai. O que acaba acontecendo é que cada um perde a oportunidade de se desenvolver individualmente, descobrir o que gosta mais, de estabelecer vínculos com o serviço e com os staffs - fica um grupo inexpressivo e amorfo, cada vez se nivelando mais por baixo, pois a tendência é seguir o que quer fazer menos.
3 – O pensamento do “nós x eles”
Na natureza, o desenvolvimento dos coletivos (matilhas, cardumes, clãs) teve um papel fundamental na sobrevivência das espécies, pois tanto a defesa como o ataque são mais efetivos em grupos organizados do que individualmente. Por isso, esse “padrão de matilha” descrito acima trás essa conotação de defesa / ataque, do “nós x eles”, dos “alunos x professores”, que na residência, vira o “residentes x staffs”. Só que residência não é continuação da sala de aula! Esse pensamento, mesmo que inconsciente, contribui muito para o mau aproveitamento da residência. Na escola os alunos são crianças e adolescentes, ainda imaturos para saberem o que é melhor para eles – se perguntar a qualquer criança ela iria preferir ter mais horas de recreio do que de aula, não ia querer ter dever de casa, nem fazer prova, por isso o professor funciona como um “personal trainer”, ele precisa obrigar o aluno a fazer o que ele não quer porque vai ser o melhor para ele. E é isso o que acontece com o staff – ele já avançou alguns anos e com isso percebeu que tem certas coisas que fizeram muita diferença para o aprendizado dele e tenta inserir isso na residência. E, como agora, o aluno é um médico formado, já com CRM (logo, pode trabalhar sozinho e ser processado), querendo se especializar, espera-se que ele queira extrair o máximo possível da residência, ainda mais que é um período de sacrifício para muita gente, muitas vezes longe de casa, morando sozinho e ganhando pouco, o que fica ainda pior para quem já é casado e com filhos, não tem cabimento desperdiçar esse momento à toa. Por isso, o “residente alfa” é tão nocivo, porque ele funciona como um aluno imaturo que acha que o professor / staff é um inimigo, que quer “massacrar” com laudos, sessões, artigos, perguntas, socorro! Temos que nos unir contra isso! Só que, é a mesma coisa que um atleta que quer (e precisa) ficar forte, se revoltar porque o treinador fala para ele pegar peso na musculação - não tem o menor sentido, e ainda piora se ele resolve incitar o time inteiro a um motim contra o exercício e o time entra na onda dele e boicota a musculação...
Devemos pensar que a residência está mais próxima de um centro de treinamento para atletas olímpicos do que de uma matilha de filhotes seguindo um lobinho metido a alfa. Pode ser um grupo forte, que crie laços profundos de amizade para a vida, mas no final das contas é um momento de desenvolvimento pessoal e isso é individual e intransferível! O maior exemplo de coleguismo é respeitar e ficar feliz com o desenvolvimento do colega, que é o que acontece com quem é bom de fato e não precisa fazer com que ninguém cresça ao seu redor para se sentir melhor.
"Os bons reclamam, os melhores se adaptam".
Ona Carbonell (nadadora sincronizada espanhola)
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