Patrícia Martins e Souza - Abril de 2024
História clínica
Paciente de 53 anos, do sexo masculino, apresentando dor intensa e importante restrição progressiva dos movimentos do ombro esquerdo há 3 meses. Solicitada ressonância magnética (RM) do ombro.
Figura 1 (a-c): RM do ombro no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (SG) à esquerda e T1 à direita de anterior (1a) para posterior (1c).
Figura 2 (a-c): RM do ombro no plano transversal na ponderação DP com supressão de gordura de superior (2a) para inferior (2c).
Figura 3 (a-c): RM do ombro no plano sagital nas ponderações T2 com supressão de gordura (SG) à esquerda e T2 à direita de lateral (3a) para medial (3c).
Descrição dos achados
Figura 1 (a-c)’: RM do ombro no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (SG) à esquerda e T1 à direita de anterior (1a') para posterior (1c’) mostrando aumento do sinal da cápsula articular no recesso axilar (seta amarela) com edema pericapsular ao longo do ligamento glenoumeral inferior (setas brancas). Note que não há distensão do recesso axilar mesmo o paciente apresentando derrame articular glenoumeral.
Figura 2 (a-c)’: RM do ombro no plano transversal na ponderação DP com supressão de gordura de superior (2a') para inferior (2c’) mostrando espessamento com aumento do sinal da cápsula articular (setas amarelas), mais acentuado inferiormente. Há derrame articular glenoumeral, com maior distensão do recesso posterior (setas azuis) e da bainha do tendão da cabeça longa do bíceps (seta laranja) em comparação com o recesso axilar.
Figura 3 (a-c)’: RM do ombro no plano sagital nas ponderações T2 com supressão de gordura (SG) à esquerda e T2 à direita de lateral (3a') para medial (3c’) mostrando a distribuição do derrame articular (setas azuis), o espessamento com aumento do sinal da cápsula articular (setas amarelas) e espessamento tecidual obliterando a gordura do intervalo rotador (setas verdes) e englobando parcialmente o tendão da cabeça longa do bíceps (setas laranjas). O ligamento coracoumeral (setas vermelhas) tem espessura normal. PC – processo coracoide.
Discussão
A capsulite adesiva, conhecida também como “ombro congelado” ou “ombro dos 50 anos”, tem prevalência estimada em 2 a 5% da população geral, predominantemente entre a 5ª e 7ª décadas de vida e acometendo mulheres em 70% dos casos. Embora seja considerada uma doença idiopática, alguns casos estão relacionados a trauma ou cirurgia e foram descritos alguns fatores de risco, como diabetes mellitus (incidência chega a 10% nos casos de diabetes mellitus tipo I e 22% dos casos tipo II), acidente vascular encefálico (incidência de 25% nos pacientes que sofreram AVE nos últimos 6 meses), síndrome de Dupuytren e doenças autoimunes e da tireoide.
O quadro clínico é caracterizado por dor incômoda e mal localizada há mais de um mês, que pode irradiar para o trajeto do tendão da cabeça longa do bíceps, podendo inicialmente ser confundida com tenossinovite do bíceps. A dor está presente mesmo em repouso e, tipicamente, é exacerbada durante a noite. Ao exame físico é observada rigidez articular, com perda do arco de movimento do ombro, sobretudo para rotação externa e abdução, chegando até a reduzir a mobilidade do balanço natural do membro superior durante a marcha.
A progressiva limitação da movimentação ativa e passiva da articulação glenoumeral é secundária aos processos inflamatórios e de fibrose da cápsula articular. Os marcadores da capsulite adesiva incluem encolhimento e perda da camada sinovial da cápsula articular com redução do volume capsular, com aderências nas paredes do recesso axilar entre si e com o úmero, inflamação, edema, espessamento do intervalo rotador e do ligamento coracoumeral. Na histologia há um processo fibrótico caracterizado por fibroblastos imersos em uma matriz de colágeno, podendo também ser encontrados miofibroblastos, o que pode estar relacionado com o desenvolvimento de contratura capsular. Estudos mais recentes demonstraram que a resposta fibrótica é sustentada por um processo inflamatório mediado por citocinas, neoangiogênese e neoinervação capsular e bursal.
Os achados clínicos e histológicos vão depender da fase ou estágio da doença:
Estágio 1 (doloroso) – ocorre nos três primeiros meses, com tendência da dor piorar à noite, associada a pequena restrição dos movimentos. Há predomínio histológico de infiltrado inflamatório, sinovite e hipervascularização capsular e pericapsular glenoumeral.
Estágio 2 (“congelante”) – ocorre entre três e nove meses, com dor e progressiva restrição dos movimentos e enrijecimento articular. Há predomínio histológico dos achados encontrados na fase inicial associados a depósito de colágeno e aderências. As descrições mais recentes têm agrupado os estágios 1 e 2como um estágio único.
Estágio 3 (“congelado”) – há acentuada restrição dos movimentos com melhora progressiva da dor em repouso, mas que permanece intensa na mobilização passiva da articulação glenoumeral, podendo durar em média entre um e dois anos.
Estágio 4 (“descongelante”) – há resolução espontânea da dor e da limitação dos movimentos, o que pode ocorrer até mais de dois anos. Nos estágios 3 e 4 os sinais inflamatórios são menos evidentes, com predomínio de depósitos de colágeno.
Os exames laboratoriais costumam ser normais, sendo solicitados em casos selecionados para excluir outras condições comumente associadas como diabetes, hipertireoidismo e doenças autoimunes.
O diagnóstico da capsulite adesiva tradicionalmente é feito com base na história e no exame físico, já que poucas afecções cursam com limitação da movimentação passiva do ombro, como a luxação glenoumeral posterior, mas em diversos casos os achados clínicos são inespecíficos e podem ser encontrados em outras situações, como tendinopatia cálcica e do manguito rotador, artropatias, doenças autoimunes e bursite, com trabalhos recentes demonstrando que a acurácia e reprodutibilidade do diagnóstico das afecções do ombro baseadas apenas no exame físico é baixa. Por esse motivo, os exames de imagem são fundamentais em diversos casos.
As radiografias do ombro costumam ser solicitadas para excluir possíveis casos de luxação glenoumeral posterior, que pode passar despercebida e é uma das poucas situações que cursam com limitação passiva do movimento do ombro.
Para o diagnóstico de capsulite adesiva o exame de escolha é a ressonância magnética, embora alguns trabalhos tenham enfatizado o papel da ultrassonografia no diagnóstico da capsulite adesiva, cujos achados vão depender do estágio da doença. Mas, para melhor compreensão dos achados de imagem da capsulite adesiva, é importante conhecer a distribuição normal do líquido articular glenoumeral e a anatomia capsoligamentar e do intervalo rotador.
A cápsula articular que envelopa a articulação glenoumeral é bastante distensível e frouxa para permitir o amplo arco de movimento articular do ombro. A cápsula se insere medialmente na glenoide e lateralmente logo abaixo do arco anatômico do úmero, sendo redundante inferiormente, onde forma uma bolsa denominada recesso axilar, que constitui o maior recesso articular do ombro (figura 4).
Figura 4: Ilustração da articulação glenoumeral no plano coronal, mostrando o recesso axilar, localizado na porção mais inferior e dependente da articulação glenoumeral. LAC – ligamento acromioclavicular, LCA – ligamento coracoacromial, PC – processo coracoide, LCC – ligamento coracoclavicular, LTU – ligamento umeral transverso, TCLB – tendão da cabeça longa do bíceps.
A cápsula articular glenoumeral, além de ser bastante distensível para permitir o amplo arco de movimento, apresenta comunicação com outras estruturas, como a bainha do tendão da cabeça longa do bíceps e o recesso subescapular. Nas figuras estão demonstrados os locais normais de distensão articular, sendo o recesso axilar o maior e primeiro recesso a ser preenchido (figuras 5 e 6).
Figura 5: Exame de artrografia do ombro com radiografia na incidência anteroposterior após a administração intra-articular de meio de contraste iodado mostrando a distribuição do líquido articular. O recesso axilar, o maior e localizado na porção mais inferior da articulação é logo preenchido pelo contraste, que se distribui para o recesso subescapular, logo abaixo do processo coracoide, e para a bainha do tendão da cabeça longa do bíceps (TCLB).
Figura 6 (a-c): Artrorressonância do ombro na ponderação T1 SG após a administração intra-articular de meio de contraste nos planos coronal (a), transversal (b) e sagital (c) mostrando a distribuição do líquido articular na articulação glenoumeral (seta verde). O recesso axilar (setas amarelas) localizado na porção mais inferior da articulação é o maior recesso, notando-se também a distensão dos recessos anterior e posterior (setas brancas), da bainha do tendão da cabeça longa do bíceps (seta laranja) e do recesso subescapular (seta azul), logo abaixo do processo coracoide (PC).
Conhecer a distribuição normal do líquido articular ajuda a entender um dos sinais da capsulite adesiva, que é a distribuição desproporcional do líquido articular, com pouca ou quase nenhuma distensão do recesso axilar em comparação com a distensão mais acentuada dos demais recessos articulares (figura 7).
Figura 7 (a-c): RM do ombro na ponderação T2 SG de outro paciente com capsulite adesiva nos planos coronal (a), transversal (b) e sagital (c) mostrando a distribuição desproporcional do líquido articular com quase nenhuma distensão do recesso axilar (seta amarela) em comparação com acentuada distensão da bainha do tendão da cabeça longa do bíceps (seta laranja) e distensão do recesso subescapular (seta azul) maior que a distensão do recesso axilar. PC – processo coracoide.
A espessura da cápsula articular glenoumeral não é uniforme, variando de acordo com o quadrante, sendo normalmente mais espessa nas porções inferior e anterior. Além disso, a cápsula é reforçada pelos ligamentos extrínsecos e intrínsecos, que contribuem para a estabilidade do ombro. Os ligamentos glenoumerais são espessamentos da cápsula que reforçam a sua porção anterior (figura 8).
Figura 8: Ilustração da articulação glenoumeral no plano sagital, com a glenoide vista de frente, mostrando os ligamentos glenoumerais. LGUS – ligamento glenoumeral superior, LGUM – ligamento glenoumeral médio, LGUI – ligamento glenoumeral inferior, PC – processo coracoide, TCLB – tendão da cabeça longa do bíceps.
Ligamento glenoumeral superior – é o ligamento glenoumeral mais constante, composto por fibras diretas e oblíquas. As fibras diretas se originam da margem anterossuperior / labrum glenoide e têm trajeto paralelo e anterior ao tendão da cabeça longa do bíceps em direção ao tubérculo menor do úmero. As fibras oblíquas se originam do tubérculo supraglenoide e cruzam por cima do tendão da cabeça longa do bíceps para se fundir com as fibras laterais do ligamento coracoumeral. O ligamento glenoumeral superior é um dos componentes da polia que estabiliza o tendão da cabeça longa do bíceps junto com o ligamento coracoumeral e também limita a rotação externa e a translação inferior da cabeça umeral.
Ligamento glenoumeral médio – é o ligamento glenoumeral mais variável, presente em 60 a 85% das pessoas, podendo ter diferentes espessuras, formatos e inserções. O ligamento típico se origina do tubérculo supraglenoide próximo ao ligamento glenoumeral superior e se insere no colo anatômico do úmero medialmente ao tubérculo menor ou profundamente às fibras do tendão subescapular, abaixo do ligamento glenoumeral superior. O ligamento glenoumeral médio limita a rotação externa e a translação anterior da cabeça umeral.
Ligamento glenoumeral inferior – também conhecido como complexo ligamentar glenoumeral inferior porque apresenta 3 porções que lhe dão a configuração de uma rede: a bandas anterior e posterior e, entre elas, o recesso axilar, a porção mais dependente da cápsula articular. Se origina dos terços inferiores do lábio glenoidal e se insere na porção inferior do colo anatômico do úmero. Limita as rotações interna e externa e a translação anterior da cabeça umeral e é o ligamento mais importante na manutenção da estabilidade articular durante a abdução do ombro. A espessura do ligamento glenoumeral inferior também é variável, sendo mais espessa na porção anterior (média de 2,8 mm) em comparação com a porção posterior (média de 1,7 mm).
O ligamento coracoumeral também tem papel importante na estabilidade glenoumeral e do tendão da cabeça longa do bíceps, sendo outro componente da sua polia. Tem origem na margem externa do processo coracoide, como uma banda única, e no intervalo rotador se divide nas bandas medial e lateral, apresentando múltiplas inserções distais nos tubérculos maior e menor, cápsula articular e nos tendões supraespinal e subescapular (figura 9).
Figura 9: Ilustração da articulação glenoumeral no plano sagital em visão lateral, mostrando o ligamento coracoumeral e sua relação com o processo coracoide e o intervalo rotador. L – ligamento, TCLB – tendão da cabeça longa do bíceps.
Os ligamentos glenoumerais e coracoumeral são identificados na RM como estruturas de baixo sinal em todas as sequências, sendo que a identificação dos ligamentos glenoumerais é facilitada pela presença de líquido articular (figura 10).
Figura 10: Imagem de artrorressonância do ombro de outro paciente na ponderação DP no plano sagital mostrando o ligamento coracoumeral (seta vermelha) e o ligamento glenoumeral superior (seta branca) e sua relação com o tendão da cabeça longa do bíceps (seta laranja) e o supraespinal (SE).
Uma recente meta-análise identificou 6 achados na RM como típicos e que apresentam a maior acurácia no diagnóstico da capsulite adesiva, cujas sensibilidade e especificidade estão resumidas no quadro 1:
Quadro 1: Resumo da sensibilidade e especificidade dos principais achados no diagnóstico de capsulite adesiva segundo a meta-análise de Picasso R. et al.
Achados típicos da capsulite adesina na RM
Espessamento da cápsula articular do recesso axilar ≥ 4 mm (figuras 11 e 12)
Espessamento e aumento do sinal do ligamento glenoumeral inferior (figura 11)
Espessamento do ligamento coracoumeral ≥ 4 mm (figura 13)
Obliteração da gordura do intervalo rotador (figuras 14 e 15)
Espessamento da cápsula articular do intervalo rotador ≥ 7 mm (figura 16)
Realce pelo contraste venoso da cápsula articular do recesso axilar e do intervalo rotador (figura 17)
Figura 11 (a-b): Imagens de RM de pacientes distintos na ponderação T2 SG no plano coronal. Paciente com capsulite adesiva (a) apresentando espessamento e aumento do sinal da cápsula articular no recesso axilar (seta amarela) e do ligamento glenoumeral inferior (setas brancas). Paciente com a cápsula do recesso axilar normal (seta azul), com espessura inferior a 4 mm e baixo sinal.
É importante ressaltar que a cápsula normal pode mimetizar cápsula espessada, principalmente sem distensão do recesso axilar, devendo nesses casos medir a sua espessura para confirmar que é superior a 4 mm e ter cuidado com esse achado isolado, sem aumento do sinal da cápsula ou edema pericapsular (figura 12).
Figura 12 (a-b): Imagens de RM de paciente de 38 anos na ponderação T2 SG no plano coronal mostrando a cápsula articular normal no recesso axilar (seta), mas que à primeira vista pode parecer espessada (a). Na mesma imagem ampliada (b) vemos que a cápsula apresenta 3 mm de espessura, além de não haver nenhum outro achado característico de capsulite adesiva e o paciente estar fora da faixa etária.
Figura 13: Imagem de RM na ponderação T2 no plano sagital de outro paciente com capsulite adesiva mostrando o ligamento coracoumeral espessado (setas vermelhas).
Figura 14 (a-b): Mesma imagem da figura (a) mostrando o ligamento coracoumeral (seta vermelha) e o ligamento glenoumeral superior (seta branca) e sua relação com o tendão da cabeça longa do bíceps (seta laranja) e o supraespinal (SE), onde é possível identificar a gordura do intervalo rotador (triângulo amarelo), que apresenta formato triangular subjacente ao ligamento coracoumeral.
Figura 15 (a-c): RM do ombro no plano sagital nas ponderações T2 SG (a) e T2 (b) do paciente do caso desse mês (mesmas imagens da figura 3b’) mostrando o espessamento tecidual obliterando a gordura do intervalo rotador (setas verdes). Note que o espessamento tecidual é mais bem identificado na imagem sem supressão de gordura. Imagem de outro paciente também na ponderação T2 (c) mostrando o espessamento tecidual obliterando parcialmente a gordura do intervalo rotador, subjacente ao ligamento coracoumeral (seta vermelha). PC – processo coracoide.
Figura 16 (a-c): RM do ombro no plano sagital nas ponderações T2 SG (a) e T2 (b e c) de outro paciente com capsulite adesiva mostrando o espessamento tecidual obliterando a gordura do intervalo rotador (setas verdes), bem mais fácil de ser identificado nas imagens sem supressão de gordura, e acompanhando a cápsula do intervalo rotador (seta amarela). PC – processo coracoide.
Figura 17 (a-b): Imagens de RM de outro paciente com capsulite adesiva no plano coronal nas ponderações T2 SG (a) e T1 SG após administração venosa de contraste (b) mostrando o espessamento e hipersinal da cápsula articular no recesso axilar (seta amarela) com intenso realce pelo meio de contraste (seta azul), assim como o hipersinal do ligamento glenoumeral inferior (setas brancas) que também apresenta realce pelo contraste (setas verdes).
Figura 18 (a-b): Imagens de RM de outro paciente com capsulite adesiva no plano coronal na ponderação T2 SG no início do quadro da capsulite adesiva (a) quando se observava hipersinal na base do lábio glenoidal superior (seta branca) e leve aumento do sinal da cápsula articular (seta laranja) com edema pericapsular no recesso axilar (seta amarela). Após 2 meses (b) há espessamento com aumento do sinal mais acentuado da cápsula no recesso axilar (seta azul) e do edema pericapsular (seta verde) e não mais se observa a alteração do sinal no lábio glenoidal superior.
Figura 19 (a-b): Imagens de RM de outro paciente com capsulite adesiva nos planos transversal (a) e coronal (b) na ponderação T2 SG mostrando espessamento tecidual no intervalo rotador (seta amarela) em associação com edema subcortical (setas brancas) subjacente ao tendão da cabeça longa do bíceps (setas laranjas).
Leitura sugerida
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