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Estiramento do gastrocnêmio medial ("tennis leg")

Patrícia Martins e Souza - Junho de 2022

Paciente de 24 anos, do sexo masculino, com dor súbita no terço médio da perna direita durante partida de tênis. Refere episódio semelhante de dor há 2 anos. Foi solicitada ressonância magnética (RM) da perna direita:


Figura 1 (a-h): Imagens consecutivas de RM no plano coronal nas ponderações STIR (a-d) e T1 (e-h) de anterior para posterior.


Figura 2 (a-c): Imagens consecutivas de RM no plano sagital na ponderação STIR. À direita imagens de referência no plano coronal mostrando a localização de cada imagem (linhas amarelas).




Figura 3 (a-g): Imagens consecutivas de RM no plano transversal nas ponderações STIR e T1 de superior para inferior. À direita imagens localizadoras no plano coronal mostrando o nível de cada imagem. Use a seta (>) para passar as imagens.



Figura 4 (a-c): Imagens de RM no plano transversal nas ponderações STIR (acima) e T1 (embaixo) da perna direita e da perna esquerda para comparação com o lado normal.



Descrição dos achados


Figura 1 (a-h)’: Imagens consecutivas de RM no plano coronal nas ponderações STIR (a-d) e T1 (e-h) de anterior para posterior, mostrando lâmina líquida (setas amarelas) entre o solear (S) e o gastrocnêmio medial (GCM) e rotura na junção mioaponeurótica do gastrocnêmio medial (seta vermelha), achado que está em correspondência com o marcador cutâneo (pontas de seta branca). Há edema de permeio às fibras musculares distais do GCM (setas brancas) com pequena coleção subaponeurótica (setas azuis), e irregularidade na aponeurose livre (seta laranja).



Figura 2 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM no plano sagital na ponderação STIR mostrando a lâmina líquida (setas amarelas) entre o solear e o gastrocnêmio medial, onde há edema de permeio às fibras musculares distais (setas brancas) com pequena coleção subaponeurótica (setas azuis).


Figura 3 (a-g)’: Imagens consecutivas de RM no plano transversal nas ponderações STIR e T1 de superior para inferior mostrando a lâmina líquida (setas amarelas) que corresponde a hematoma entre o solear (S) e o gastrocnêmio medial (GCM), onde há edema de permeio às fibras musculares distais (setas brancas). Na ponderação T1 é mais evidente o espessamento da aponeurose do GCM (setas verdes) o que sugere alteração crônica em associação com nova lesão aguda com pequena coleção subaponeurótica (setas azuis). Distalmente há a rotura na junção mioaponeurótica do GCM (setas vermelhas).



Figura 4 (a-c)’: Imagens de RM no plano transversal nas ponderações STIR (acima) e T1 (embaixo) da perna direita e da perna esquerda para comparação com o lado normal mostrando a rotura na junção mioaponeurótica do gastrocnêmio (seta vermelha), lâmina líquida (setas amarelas) entre o solear (S) e o gastrocnêmio medial (GM), onde há edema de permeio às fibras musculares distais (setas brancas) e pequena coleção subaponeurótica (setas azuis). Na ponderação T1 e comparando com o lado normal é mais evidente o espessamento da aponeurose do GCM (setas verdes) o que sugere lesão prévia.



Discussão


Os estiramentos tipicamente afetam músculos que cruzam duas articulações, têm formato fusiforme, alta proporção de fibras do tipo II e são submetidos a contração excêntrica. Por isso que no membro inferior os músculos classicamente acometidos são os isquitobiais, o reto femoral e o gastrocnêmio medial.


Estiramento dos músculos da panturrilha é muito comum entre atletas profissionais e amadores e, embora possa ocorrer em diversos esportes, é muito comum entre os praticantes de tênis, amadores e profissionais, especialmente na meia idade. Mas, embora classicamente relacionado ao tênis, o estiramento na panturrilha representa até 13% das lesões nos jogadores de futebol e também ocorre em algumas atividades ocupacionais, como marinheiros, profissionais de construção, indústria e operadores de maquinário.


Em 1883, a dor medial súbita na panturrilha descrita como “tipo uma facada ou uma pedrada” que acometia os tenistas durante o movimento de extensão máxima dos músculos posteriores da perna (joelho em extensão e tornozelo em dorsoflexão, o que implica em contração ativa e alongamento passivo do gastrocnêmio) foi descrita como “tennis leg”. Na época, acreditava-se que a etiologia seria a rotura do tendão plantar, mas estudos posteriores concluíram que a lesão ocorre na porção distal da cabeça medial do gastrocnêmio.


O gastrocnêmio é o músculo da panturrilha com maior risco de lesão porque cruza duas articulações (o joelho e o tornozelo) e tem alta densidade de fibras do tipo II (contração rápida), enquanto o músculo solear cruza apenas o tornozelo e tem predomínio de fibras do tipo I (contração lenta). Mas, dependendo do esporte, a lesão do solear pode ser mais frequente em comparação com o gastrocnêmio medial, e não é incomum haver lesão concomitante do solear e do gastrocnêmio medial.



Anatomia dos músculos da panturrilha


Os músculos da panturrilha (solear e gastrocnêmio) são também conhecidos como tríceps sural, formado pelo músculo solear, mais largo e profundo, e pelas cabeças medial e lateral do gastrocnêmio (mais superficial) que formam a margem inferior da fossa poplítea. O gastrocnêmio medial termina um pouco mais distal em relação ao gastrocnêmio lateral, e o solear alguns centímetros abaixo. No quadro 1 estão resumidas a origem, inserção, ação e inervação dos músculos da panturrilha.



Quadro 1: Origem, inserção, ação e inervação dos músculos da panturrilha.


Os músculos da panturrilha são do tipo penado (figura 5), que apresentam tendões ou aponeuroses longas, com inserção obliquada nas fibras musculares.


Figura 5: Representação esquemática dos tipos de músculo penados, cujas fibras têm orientação oblíqua, podendo ser unipenados, quando os feixes musculares se fixam em um só lado do tendão, gerando uma transição miotendínea oblíqua, denominada aponeurose, bipenados, quando os feixes se fixam nos dois lados do tendão, que passa a ter localização central, ou multipenados, quando os feixes convergem para vários tendões que se prolongam pelo interior do músculo.


Isso significa que as junções miotendíneas e mioaponeuróticas se estendem consideravelmente ao longo do músculo, não se restringindo apenas às porções mais proximais ou distais (figura 6).


Figura 6: Representação esquemática no plano sagital (perfil) das aponeuroses e da junção miotendínea do solear e gastrocnêmio medial.


As cabeças medial e lateral do gastrocnêmio têm sua própria aponeurose anterior proximalmente, sendo que a aponeurose medial se estende obliquamente abaixo da porção medial do ventre muscular do gastrocnêmio lateral. Distalmente, ambas as aponeuroses do gastrocnêmio convergem e se tornam uma aponeurose única, a aponeurose anterior do gastrocnêmio, adjacente à aponeurose do solear, que mais distalmente se combinam para formar o tendão calcâneo, conhecido também como tendão de Aquiles. O ponto de junção entre as aponeuroses do gastrocnêmio e do solear é variável, mas geralmente a aponeurose do gastrocnêmio apresenta uma área sem fibras musculares imediatamente antes de se unir com a aponeurose do solear, conhecida como aponeurose livre do gastrocnêmio, que na maioria dos casos é maior que 1 cm, embora ocasionalmente possa ser ausente.


O tendão plantar tem origem adjacente à cabeça lateral do gastrocnêmio e logo cruza medialmente ao longo da margem da porção medial do solear até a junção das aponeuroses do solear e do gastrocnêmio medial, de onde se continua entre elas distalmente, usualmente com trajeto medial junto ao tendão de Aquiles (figura 7), mas podendo permanecer entre as aponeuroses ou se fundir ao tendão de Aquiles. Pela proximidade anatômica, durante muitos anos o tendão plantar foi implicado na etiologia dos estiramentos da panturrilha, mas atualmente é considerado um tendão praticamente vestigial que pode estar ausente em muitos indicíduos e é raramente envolvido nas lesões por estiramento.