Depois de tantos avanços tecnológicos e científicos, muitos não conseguem entender o grande retrocesso observado em alguns discursos, como o dos terraplanistas e do movimento antivacina, que parecem saídos da baixa idade média. Como isso pode estar acontecendo em pleno século XXI? E o que isso tem a ver com a radiologia musculoesquelética?
Quando, em vez de focarmos no discurso em si, tentamos encaixá-lo num padrão, vemos com clareza que diversos padrões se repetem ao longo dos séculos. E, detectando o que está por trás de um padrão nocivo, fica mais fácil perceber que estamos reproduzindo o mesmo padrão em outro contexto e, com isso, evitarmos seu efeito danoso.
E qual seria o padrão e em que situações replicamos essa forma de pensar no dia a dia da radiologia? Para exemplificar, faremos uma comparação entre o padrão dos discursos antivacina com o que ouvimos sobre os exames de COLUNA, onde encontramos as seguintes semelhanças e consequências:
1- Considerar apenas um fragmento da verdade
Um dos principais fatores que ajuda a propagação de falsas afirmações é que elas têm uma parcela de verdade. É fato que já existiram pessoas que morreram ou sofreram efeitos colaterais ao tomar uma vacina. O problema é se apegar apenas a essas informações, ignorando os demais fatos, como as vacinas serem responsáveis por evitar de 2 a 3 milhões de mortes anualmente, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), número infinitamente maior em comparação com os raros casos de efeitos graves pós-vacina.
É muito comum ouvirmos que ressonância magnética de coluna é um exame rápido, que ajuda a tirar atraso da agenda e que está entre os mais fáceis. Mas isso também não seria um fragmento de verdade? Claro que existem exames de coluna fáceis (como também existem exames fáceis em qualquer outra região do corpo), mas o que dizer dos exames pós-trauma com lesões instáveis nem sempre óbvias? E as alterações do sinal da medula óssea que podem indicar desde alterações fisiológicas a infiltração tumoral maligna difusa? E as lesões tumorais? Isso sem falar das alterações que acometem os arcos posteriores, quase sempre esquecidos, a coluna pediátrica, os tumores de bainha, compressão medular... E, quando não esperamos encontrar uma alteração, o risco de não a enxergarmos aumenta muito, conforme já discutido no post sobre "A cegueira involuntária".
2 - A verdade parcial tem algum grau de conveniência
É fato que a injeção da vacina dói, tem o deslocamento até o posto de saúde, filas... Ser contra a vacina para muitos também tem o significado de ser contra o imperialismo americano, a indústria farmacêutica, o que não é natural e os testes em animais. Isso faz com que seja conveniente se agarrar ao pequeno fragmento de verdade porque ele trás algum grau de conforto.
Com tantos exames evoluindo e, com isso, ficando mais demorados, com mais sequências e mais dificuldades de interpretação, é conveniente acreditarmos que existe pelo menos algum exame “rápido, simples e fácil”, com poucas sequências e com interpretação mais simples. Porém, isso faz com os avanços nos exames de coluna sejam bloqueados, presos a protocolos obsoletos e que deixam de fornecer informações importantes.
3- Utilizar os mesmos argumentos do passado
Os antivacina de hoje usam os mesmos argumentos do século XIX, época em que também existiram pessoas contra as vacinas, até porque, por ser uma novidade, ninguém realmente sabia quais seriam os riscos e benefícios. E, nessa época, afirmações como “se vacinar contra a varíola pode causar sífilis” faziam sentido, pois não existiam materiais descartáveis e, muitas vezes, a mesma seringa e agulha eram utilizadas para todas as pessoas da fila, gerando contaminação. Mas a realidade da vacinação há dois séculos não é a mesma de hoje.
Quando afirmamos que os exames de coluna são rápidos, estamos considerando o protocolo básico, utilizado antes da existência de novas sequências de pulso e do reconhecimento de que outras ponderações podem ser úteis em diversas alterações. Exames de ressonância magnética da pelve já estiveram entre os exames mais rápidos, o que não é a realidade de hoje em dia. Da mesma forma, hoje temos sequências Dixon, o uso da difusão tem crescido nos exames de musculoesquelético e muitos serviços já adotaram sequências STIR como parte da rotina dos exames de coluna. Uma das dificuldades que encontro no dia a dia, por exemplo, é que sejam feitas sequências adicionais em exames oncológicos ou com imagens suspeitas, como a difusão e mapa ADC no plano transversal e T1 em fase e fora de fase, uma vez que muitos não cogitam sair da rotina nos exames de coluna por estarem presos a esse pensamento do "exame que tem que ser rápido". Ao ficarmos presos ao conceito de que exames de coluna são básicos e de que a rotina é sempre suficiente, deixamos de usar todos os recursos disponíveis para o diagnóstico.
4- São criadas "corridas malucas"
As "corridas malucas" podem ser tanto na direção do alvo ou como fuga.
No caso dos antivacina, eles criam estratégias para fugir da vacinação, como o uso do argumento da “liberdade individual”.
Ao criarmos um discurso que propaga a existência de um exame fácil e rápido, isso cria uma corrida em direção a esse exame, afinal quem não quer liberar um exame “tranquilo”, ainda mais quando se ganha por produção? Isso é muito evidente com os exames de coluna: é o exame que todos sentem segurança, independente da especialidade e tempo de experiência, sendo, inclusive, um dos primeiros exames que os residentes se aventuram quando estão aprendendo ressonância magnética. Para quem participou da semana dos textos sobre erros, sabe os riscos que essa prática pode ocasionar: com esse pensamento já se começa a análise achando que não vai ser encontrado nada grave com o agravante de não possuir o conhecimento necessário para detectar uma série de alterações. E o inverso também é verdadeiro: cria-se também um movimento de fuga de outros exames, que ficam com estigma de “complexos e demorados”, mas que se houvesse um maior conhecimento sobre esses exames eles não seriam tão complicados assim e muitas vezes demandariam bem menos tempo que muitos exames de coluna...
Discursos preconceituosos, mesmo que em tom de brincadeira, são nocivos porque influenciam a forma de pensar e, com isso, o comportamento de um grupo, com efeitos em cascata que desvalorizam a profissão e aumentam a chance de erros diagnósticos!
“Se queremos progredir, não devemos repetir a história, mas fazer uma história nova”.
Mahatma Gandhi.
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