Adolescente do sexo masculino de 14 anos, com dor e impotência funcional após trauma torcional enquanto andava de skate. Solicitada tomografia computadorizada (TC) do tornozelo:
Figura 1 (a-c): Reconstrução tomográfica do tornozelo com a técnica MPR no plano coronal (de anterior para posterior).
Figura 2 (a-b): Reconstrução tomográfica da tíbia distal com a técnica MPR no plano transversal.
Figura 3 (a-c): Reconstrução tomográfica do tornozelo com a técnica MPR no plano sagital (de medial para lateral).
Figura 4: Reconstrução tomográfica tridimensional (3D) do tornozelo em visão coronal anterior.
Descrição dos achados
Figura 1 (a-c)’: Reconstrução tomográfica do tornozelo com a técnica MPR no plano coronal (de anterior para posterior) mostrando traço de fratura vertical articular (setas vermelhas) que se estende à porção lateral da placa fisária (setas amarelas), com fragmento epifisário destacado (setas brancas).
Figura 2 (a-b)’: Reconstrução tomográfica da tíbia distal com a técnica MPR no plano transversal mostrando fragmento epifisário anterolateral destacado (seta branca).
Figura 3 (a-c)’: Reconstrução tomográfica do tornozelo com a técnica MPR no plano sagital (de medial para lateral) mostrando a fratura através da placa fisária (setas amarelas).
Figura 4’: Reconstrução tomográfica tridimensional (3D) do tornozelo em visão coronal anterior mostrando o destacamento da porção anterolateral da epífise (seta branca).
Discussão
Fraturas na tíbia distal correspondem a 4% das lesões no tornozelo e constituem cerca de 11% das lesões epifisárias.
O termo fratura de Tillaux é o epônimo da fratura articular que acomete a epífise anterolateral da tíbia distal secundária a trauma torcional em rotação externa e abdução do pé em relação à perna, sendo considerado um trauma de baixa energia.
Geralmente ocorre com a rotação lateral forçada do pé em posição neutra ou supinação ou com a rotação medial da perna com o pé fixo, sendo comum em esportes como skate e basebol. Quando o pé é rodado externamente, o tálus exerce estresse compressivo em torque que propaga o traço de fratura através da superfície articular até a placa de crescimento (figura 5).
Figura 5 (a-b): Representação esquemática do tornozelo em posição neutra (5a) e rotação externa (5b) e supinação mostrando a relação do tálus com a epífise distal da tíbia na rotação externa e o efeito de tração do ligamento tibiofibular anteroinferior sobre a porção anterolateral da epífise tibial.
Nessa situação, o forte ligamento tibiofibular anteroinferior exerce tração na superfície anterolateral da tíbia, causando uma fratura por avulsão comumente chamada de fratura juvenil de Tillaux, que representa de 3 a 5% das fraturas pediátricas no tornozelo.
A fratura de Tillaux acomete adolescentes ou crianças mais velhas em que a placa de crescimento está começando a fechar, ocorrendo tipicamente dos 12 aos 14 anos quando a fise encontra-se parcialmente fechada (média de 12 anos em meninas e 14 anos em meninos).
O processo de fusão da placa fisária da tíbia distal costuma durar de 12 a 18 meses, começando a fechar no terço médio, passando depois para a porção anteromedial, em seguida para a porção posteromedial, com a porção lateral fechando mais tardiamente, geralmente começando posteriormente e progredindo anteriormente (figura 6). A fise está ossificada usualmente entre 12 e 15 anos e completamente unida à diáfise em torno dos 18 anos de idade.
Figura 6 (a-b): Representação esquemática do processo de fechamento (fusão) da placa fisária da tíbia distal nos planos coronal (6a) e transversal (6b) mostrando que o processo se inicia a partir dos 12 anos de idade no terço médio/posterior se estendendo inicialmente medialmente, depois progredindo lateralmente, sendo a porção anterolateral a última porção a fusionar em torno dos 14 aos 15 anos.
A fratura juvenil de Tillaux ocorre após o fechamento da porção medial da fise, mas antes da fusão da porção lateral, o que limita a faixa etária para cerca de 12 a 14 anos. Embora a maioria das lesões do tornozelo ocorram em meninos, a fratura de Tillaux tem acometido mais meninas a partir da secunda metade do século XX em virtude da maior participação dos adolescentes em esportes.
Raramente é observada em adultos com o esqueleto maduro porque o ligamento tibiofibular anterior geralmente rompe primeiro, sem que ocorra destacamento da sua inserção na superfície tibial, o que é conhecido como lesão de Tillaux.
O paciente costuma referir dor intensa na porção anterior do tornozelo e dificuldade de sustentar o peso no lado do pé acometido.
Ao exame físico é comum a presença de edema anterior no tornozelo e terço distal da perna e equimose. Nos casos mais graves pode ser observada deformidade em rotação externa do pé. A avaliação da estabilidade do tornozelo costuma ser impossibilitada pela dor.
A estabilidade do tornozelo é decorrente da combinação da arquitetura óssea, cápsula articular e ligamentos que formam a sindesmose, os ligamentos tibiofibulares anterior, posterior e transverso e a membrana interóssea (figura 7).
Figura 7: Representação esquemática dos ligamentos tibiofibulares e da membrana interóssea. Modificado de anatomyzone.com.
O ligamento tibiofibular anterior se origina da margem anterolateral da tíbia e apresenta trajeto oblíquo para se inserir na fíbula distal inferiormente. O ligamento tibiofibular posterior, que se origina no tubérculo posterolateral da tíbia e se insere posteriormente na fíbula é mais espesso e forte que o ligamento tibiofibular anterior, por isso no adulto o trauma torcional causa mais frequentemente rotura do ligamento tibiofibular anterior, o que é conhecido como lesão de Tillaux, e quando há fratura por avulsão ela ocorre no tubérculo posterolateral da tíbia. Já na criança os ligamentos são mais fortes que a fise, por isso as roturas ligamentares são raras, ocorrendo mais frequentemente a fratura por avulsão da epífise anterolateral no local da inserção ligamentar (figura 8).
Figura 8 (a-c): Representação esquemática da fratura de Tillaux, com o fragmento anterolateral da epífise tibial ainda aberta avulsionado pela tração exercida pelo ligamento tibiofibular anteroinferior (em amarelo).
A fratura de Tillaux é caracterizada por um traço vertical na epífise distal da tíbia, com extensão horizontal da fratura através da placa fisária (figura 9). Quanto mais maduro o esqueleto da criança, mais lateral será o traço de fratura vertical.
Figura 9 (a-b): Radiografia do tornozelo na incidência anteroposterior de outro paciente mostrando o fragmento avulsionado (seta branca) da porção anterolateral da epífise distal da tíbia (9a). Na mesma imagem à esquerda (9b) a linha tracejada amarela delimita a fratura de Tillaux, com o componente vertical articular e o componente que atravessa a porção não fusionada placa fisária.
O fragmento fraturado tende a rodar anterolateralmente e o deslocamento costuma ser mínimo, embora ocasionalmente possa ser bem acentuado (figura 10).
Figura 10: Reconstrução tomográfica da tíbia distal com a técnica MPR no plano transversal mostrando fragmento epifisário anterolateral destacado, deslocado e com rotação anterolateral (seta amarela).
É considerada uma fratura do tipo III pela classificação de Salter-Harris, já que atravessa a placa fisária da porção anterolateral da tíbia com extensão à articulação tibiotalar.
Para maiores detalhes da classificação de Salter-Harris veja a página CLASSIFICAÇÕES / OUTROS.
Como a fíbula é mais flexível, dificilmente observamos fratura fibular associada, ao contrário de outras fraturas na tíbia distal. Entretanto, o mecanismo torcional pode ocasionar fratura proximal na fíbula em associação.
O principal diagnóstico diferencial da fratura de Tillaux é a fratura triplanar, sendo ambas os únicos padrões de fratura na tíbia distal comumente encontrados em adolescentes. As fraturas triplanar e de Tillaux são denominadas por alguns autores como fraturas de transição, já que acometem a camada germinativa da placa de crescimento parcialmente fusionada. A ausência de extensão da fratura para a região metafisária no plano coronal (avaliada na radiografia em perfil ou no plano sagital) é o que distingue a fratura de Tillaux da fratura triplanar. A fratura triplanar aparece como uma fratura tipo Salter-Harris III na incidência AP e tipo II no perfil, enquanto a fratura de Tillaux aparece como Salter-Harris tipo III em ambas as incidências (figura 11).
Figura 11 (a-d): Reconstrução tomográfica da tíbia distal com a técnica MPR nos planos coronal (11a e 11b) e sagital (11c e 11d) mostrando algumas diferenças entre as fraturas de Tillaux à esquerda e triplanar à direita) de pacientes distintos. No plano coronal, os fragmentos das fraturas de Tillaux (seta branca) e triplanar (seta amarela) parecem semelhantes, na porção lateral da epífise. Mas no plano sagital, na fratura de Tillaux é identificado apenas o fragmento epifisário anterolateral destacado (seta verde), enquanto na fratura triplanar há acometimento também da região metafisária (seta azul).
A avaliação inicial das fraturas do tornozelo é radiográfica, sendo recomendado a realização das incidências anteroposterior (AP), perfil (lateral) e oblíquas. A identificação da fratura de Tillaux apenas com as incidências AP e perfil costuma ser muito difícil quando não há deslocamento significativo do fragmento, com o perfil sendo importante principalmente para excluir a fratura triplanar.
É importante a realização de radiografias de toda a perna para excluir fratura na porção proximal da fíbula.
A tomografia computadorizada é o exame de escolha, sendo mais sensível que as radiografias, sobretudo para estimar o grau de diastase, deslocamento e rotação do fragmento e a congruência articular. Entretanto, alguns estudos não mostraram muita diferença na definição da conduta entre os pacientes com fraturas epifisárias que fizeram apenas radiografias daqueles que realizaram estudos radiográficos e tomográficos, embora outros trabalhos encontraram alta incidência (cerca de 40%) de fraturas maleolares não identificadas nas radiografias, incluindo as fraturas de Tillaux.
Como fraturas intra-articulares, requerem redução e fixação anatômica para evitar complicações pós-traumáticas. O objetivo do tratamento é evitar o fechamento precoce da placa fisária e a restauração da superfície articular e a prevenção da osteoartrite precoce do tornozelo através da redução estável do fragmento para manutenção da congruência articular.
Quando há menos de 2 mm de deslocamento e a lesão por sindesmose é excluída, essas fraturas podem ser tratadas conservadoramente por imobilização. Já as fraturas deslocadas acima de 2 mm e translação maior que 1 mm devem ser tratadas cirurgicamente.
Os pacientes com fratura de Tillaux podem apresentar dor persistente e rigidez articular por até 2 anos após a lesão. As complicações descritas são retardo da consolidação, pseudoartrose, deformidade em varo, rotacional ou inclinação do tornozelo e osteoartrite prematura secundária. Raramente a fratura de Tillaux pode ocasionar discrepância no comprimento dos membros inferiores, uma vez que a epífise distal contribui com aproximadamente 45% do crescimento da tíbia.
Paul Jules Tillaux (1834-1904) foi um anatomista e cirurgião francês que realizou experimentos em cadáveres que demonstraram a aplicação de estresse sobre o ligamento tibiofibular anteroinferior resultava em fratura por avulsão, que ficou conhecida como fratura de Tillaux.
Leitura sugerida
Yuan Q, Guo Z, Wang X, Dai J, Zhang F, Fang J, Yin C, Yu W, Zhen Y. Concurrent ipsilateral Tillaux fracture and medial malleolar fracture in adolescents: management and outcome. J Orthop Surg Res. 2020 Sep 17;15(1):423. doi: 10.1186/s13018-020-01961-7.
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