Patrícia Martins e Souza - Maio de 2021
História clínica
Paciente de 46 anos, do sexo masculino, com dor no quadril esquerdo exacerbada pelas atividades físicas. Foram solicitadas radiografias da bacia e ressonância magnética (RM) do quadril esquerdo:
Figura 1 (a-b): Radiografias da bacia na incidência anteroposterior (1a) e de Lauenstein (1b).
Figura 2 (a-b): Imagens consecutivas de RM da bacia no plano coronal nas ponderações STIR (no centro) e T1 à direita de anterior para posterior. À esquerda imagens no plano transversal mostrando o nível de cada imagem.
Figura 3 (a-b): Imagens de RM do quadril esquerdo no plano coronal nas ponderações T1 (no centro) e DP com supressão de gordura à direita. À esquerda imagens no plano transversal mostrando o nível de cada imagem.
Figura 4 (a-c): Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano transversal nas ponderações DP com supressão de gordura (no centro) e T1 à direita de superior para inferior. À esquerda imagens no plano coronal mostrando o nível de cada imagem.
Figura 5 (a-c): Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano transversal oblíquo na ponderação DP com supressão de gordura de superior para inferior. À esquerda imagens no plano coronal mostrando a orientação e nível de cada imagem.
Figura 6 (a-c): Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano sagital na ponderação DP com supressão de gordura de lateral para medial.
Descrição dos achados
Figura 1 (a-b)’: Radiografias da bacia na incidência anteroposterior (1a’) e de Lauenstein (1b’) ampliadas, com destaque para as articulações coxofemorais, mostrando imagens arredondadas radioluscentes subcorticais com fino halo de esclerose na margem anterior da transição da cabeça com o colo femoral esquerdo (setas brancas) e aparente abaulamento da cortical em correspondência (setas verdes). Note que há hipertrofia com ossificação da margem lateral do teto acetabular esquerdo (setas azuis), em comparação com o contralateral (setas laranjas).
Figura 2 (a-b)’: Imagens consecutivas de RM da bacia no plano coronal mostrando alterações fibrocísticas com hipersinal na ponderação STIR (seta branca no centro) e com baixo sinal em T1 à direita (seta amarela) em correspondência com as imagens radioluscentes identificadas nas radiografias na figura 1.
Figura 3 (a-b)’: Imagens de RM do quadril esquerdo no plano coronal mostrando as alterações fibrocísticas (3a’) com baixo sinal nas ponderações T1 (seta amarela) e alto sinal em DP com supressão de gordura (seta branca). É possível notar nas imagens localizadoras à esquerda abaulamento da margem anterior da transição cabeça-colo femoral (setas verdes), o que não tem expressão na imagem coronal seccional mais central (3b’), onde se observa ossificação parcial do labrum acetabular anterossuperior (setas azuis).
Figura 4 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano transversal mostrando as alterações fibrocísticas com alto sinal em DP com supressão de gordura (setas brancas) e baixo sinal nas ponderações T1 (setas amarelas) e o abaulamento da margem anterior da transição cabeça-colo femoral (setas verdes).
Figura 5 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano transversal oblíquo na ponderação DP com supressão de gordura mostrando as alterações fibrocísticas (setas brancas) e o abaulamento da margem anterossuperior da transição cabeça-colo femoral (seta verde).
Figura 6 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM do quadril esquerdo no plano sagital na ponderação DP com supressão de gordura mostrando heterogeneidade do sinal da junção condrolabral anterossuperior (seta azul) com tênue focos de edema subcondral adjacente (seta vermelha) e as alterações fibrocísticas da margem anterior da transição cabeça-colo femoral (seta branca).
Discussão
O impacto femoroacetabular (IFA) é uma causa frequente de dor no quadril, com prevalência estimada em 10 a 15%, sendo a principal causa de osteoartrose do quadril no jovem com quadril não-displásico.
A osteoartrite / osteoartrose do quadril pode ser:
- Primária (ou idiopática, ou seja, sem causa definida) – afeta pessoas com idade mais avançada, geralmente é bilateral e acomete várias articulações.
- Secundária – afeta pessoas mais jovens e geralmente é monoarticular e apresenta algum fator predisponente que afeta a cartilagem articular ou é decorrente de alterações morfológicas, como as identificadas no IFA.
Os conceitos do IFA moderno foram descritos no artigo clássico de Ganz et al. em 2003, onde os autores sugerem que deformidades discretas femorais e acetabulares associadas ao movimento são responsáveis pelo desenvolvimento da osteoartrose, classificando e descrevendo os principais achados clínicos e radiográficos.
O IFA é dividido em 3 tipos:
“Pincer” (também conhecido em português como torquês ou pinçamento, é o impacto de causa acetabular) – causado por uma alteração da cavidade acetabular, resultando em um contato anormal entre o acetábulo e a transição cabeça-colo femoral, sendo mais comum em mulheres ativas de meia idade.
“Cam” (‘came’ em português, um termo da engenharia mecânica para descrever um conjunto de duas peças onde o came seria a peça projetada para produzir um movimento alternado em linha reta ou oscilante na outra peça denominada “seguidor”, conforme a figura animada 7 – causado pelo contato entre o acetábulo e uma transição cabeça-colo femoral anormal, ou seja, a causa do impacto é femoral, sendo mais comum em jovens do sexo masculino.
Figura 7: Animação mostrando o mecanismo do came, onde uma peça com movimento giratório (o came) produz um movimento alternado em linha reta ou oscilante na peça denominada “seguidor”, o que seria semelhante ao que ocorre no IFA de causa femoral.
Misto – associação das alterações “pincer” e came, sendo o tipo mais comum (incidência de 77 a 86% dos casos). Entretanto, geralmente o paciente apresenta um tipo predominante.
Na figura 8 estão representados os tipos de impacto femoroacetabular came e “pincer” para comparação.
Figura 8: Representação esquemática tridimensional do quadril normal ( a) e dos tipos de impacto: o tipo came ( b), onde há prominência anterior da transição da cabeça com o colo femoral (seta preta) e o tipo “pincer” ( c), em que há prominência acetabular (seta vermelha).
O diagnóstico da síndrome do IFA é baseado em sintomas clínicos, alterações de exame físico e achados em exames de imagem. Esta consideração é importante porque pacientes assintomáticos frequentemente apresentam achados radiográficos anormais relacionados ao IFA no quadril (cerca de 57% dos homens e 43% das mulheres), e sua significância é determinada pela história clínica e pelo exame físico. Por isso, o diagnóstico de impacto femoroacetabular não deve ser realizado somente por exames de imagem.
Quadro clínico:
Dor é a queixa principal dos pacientes com IFA, sobretudo na região anterior da virilha. As características típicas da dor do IFA estão resumida no quadro 1:
Quadro 1: Características típicas da dor do IFA.
A dor associada a estalidos, travamentos e falseios pode estar relacionada a lesões osteocondrais, IFA e lesão na transição condrolabral, com especificidade de 85% e sensibilidade de 100%, assim como a dor à rotação medial ou relacionada às atividades esportivas que demandem de rotação associada ao pivotamento ou flexão também é indicativa de afecção intra-articular.
O teste do IFA anterior é considerado positivo quando a dor é reproduzida durante a realização de rotação interna / adução forçada em 90° de flexão e o IFA posterior quando há dor durante a rotação externa forçada em extensão completa.
A exata etiologia do IFA ainda não está completamente estabelecida, mas existem alguns fatores de risco já estabelecidos: fatores hereditários, atletas do sexo masculino e atividades que requerem extremos de movimento (principalmente flexão e rotação), como dança e ginástica artística. Na figura 9 estão demonstrados como os diversos tipos de impacto influenciam no arco de movimento do quadril:
Figura 9 (a-c): No quadril normal (9a) não há conflito entre o acetábulo e a cabeça femoral, que deve ser uma esfera perfeita (círculo tracejado azul) com uma concavidade na transição cabeça-colo femoral (seta azul). A forma anatômica da articulação coxofemoral permite o arco normal de movimento do fêmur em relação à cavidade acetabular (seta curva azul). No impacto tipo came (9b), a deformidade femoral anterior (seta verde) reduz o arco de movimento (seta curva preta) e propicia o impacto entre o acetábulo e a margem anterior da transição da cabeça–colo femoral proeminente (círculo verde). No impacto tipo "pincer" (9c), a deformidade acetabular (seta laranja) também reduz o arco de movimento (seta curva preta) e propicia o impacto entre o acetábulo proeminente e a margem anterior da transição da cabeça-colo femoral (círculo laranja). Há também em associação discreta subluxação posterior da cabeça femoral, que predispõe a lesão condrolabral posterior por contragolpe (seta curva vermelha).
É importante lembrar o conceito de síndrome do impacto femoroacetabular, no qual a interpretação radiológica é parte de um contexto de análise de sinais, sintomas e imagens. Por exemplo, uma pequena deformidade tipo came associada a retroversão femoral pode ser mais grave do que uma deformidade tipo came maior com anteversão femoral normal. A padronização na análise dos exames de imagem aumenta a precisão e a velocidade com que se realiza essa análise.
O impacto femoroacetabular do tipo came
Para que o quadril tenha um movimento sem conflito, a cabeça femoral deve ser uma esfera perfeita com uma concavidade na transição cabeça-colo femoral, conforme visto nas figuras 8a e 9a. A causa do impacto predominantemente femoral pode ocorrer tanto por deformidade (idiopática ou adquirida) e/ou retroversão femoral.
As radiografias permitem uma avaliação morfológica do quadril, sendo fundamentais para a definição do diagnóstico e tratamento dos pacientes com IFA. Diferentes séries radiográficas são indicadas na literatura para avaliação inicial do quadril doloroso não-traumático em adultos jovens. As rotinas mais utilizadas na pesquisa de IFA incluem as incidências anteroposterior (AP) da bacia e laterais do quadril acometido.
Na página NOTAS & MEDIDAS / BACIA e QUADRIL estão listadas com mais detalhes as características das diversas incidências radiográficas na rotina de avaliação do IFA.
A deformidade tipo came típica é caracterizada pela perda da concavidade da junção cabeça-colo femoral na porção anterossuperior, que passa a apresentar um achatamento ou convexidade / proeminência óssea na sua margem anterior conhecida como “bump”, abaulando o contorno anterior da transição da cabeça-colo femoral conforme demonstrado nas figuras 8b e 9b. Esse tipo de deformidade é mais bem avaliado nos métodos seccionais e nas incidências radiográficas laterais.
A deformidade pode também ser mais lateral, conhecida como deformidade em cabo de pistola (“pistol-grip”), que se acredita ser secundária ao escorregamento femoral proximal subclínico, onde ocorre uma extensão lateral anormal da fise de crescimento da cabeça femoral mais horizontalizada, que costuma ser bem identificada na radiografia AP da bacia, onde se nota a perda da concavidade do aspecto lateral da cabeça femoral (figura 10).
Figura 10 (a-b): Deformidade em cabo de pistola (seta verde) identificada na radiografia AP (10a), caracterizada pelo abaulamento do contorno lateral da transição cabeça-colo femoral, semelhante ao cabo de uma pistola, conforme a figura 10b. Case courtesy of Dr Benoudina Samir. From the case radiopaedia.org/cases/48708.
Entretanto, a incidência (AP) da bacia no IFA do tipo came tem papel mais relevante na exclusão de outras causas de dor no quadril, como fraturas, displasia acetabular e osteoartrite. Argumenta-se que a principal deformidade no escorregamento epifisário subclínico é no plano sagital e que normalmente não seria evidente na incidência AP. Além disso, o termo cabo de pistola representa uma definição qualitativa de deformidade tipo came, não permitindo comparação entre as deformidades, nem sendo um critério diagnóstico objetivo.
As sequelas das alterações no desenvolvimento do quadril na infância também podem acarretar o impacto de causa femoral, assim como alterações secundárias a doença de Legg-Calvé-Perthes e fraturas no colo femoral.
A presença de uma extensão lateral anormal da fise de crescimento da cabeça femoral mais horizontalizada e a participação intensa em atividades esportivas durante a fase final da adolescência, próxima ao fechamento da fise, pode estar relacionada ao desenvolvimento do came secundário a um estresse mecânico na fise.
Foram descritas algumas medidas para tentar quantificar de forma objetiva a deformidade femoral:
“Offset” femoral – avalia a largura do colo em relação à cabeça femoral, mensurando o espaço entre a cabeça e o colo femoral, necessário para evitar impacto da transição cabeça/colo com o acetábulo durante os movimentos, devendo ser superior a 8 a 10 mm no adulto (figura 11).
Figura 11 (a-b): Representação esquemática (11a) da avaliação do “offset” femoral (O) na imagem seccional no plano transversal oblíquo, obtido conforme imagem de referência no alto à esquerda, definido como a distância entre uma linha passando pela margem anterior da cabeça femoral (linha F) paralela à linha que passa pelo centro da cabeça e do eixo longitudinal do colo femoral (linha C) e uma linha também paralela que tangencia a face anterior do colo femoral (linha A). Essa medida também pode ser feita na incidência em perfil (11b), nesse exemplo o perfil de Ducroquet.
O “bump” ósseo leva a redução do “offset” femoral (figura 12), definido como a distância entre o maior diâmetro da cabeça femoral e a porção mais proeminente do colo femoral, podendo ser avaliado nas imagens seccionais (TC e RM) e nas incidências laterais, como o perfil de Ducroquet e o perfil cirúrgico (“cross-table”). A razão do "offset" é calculada dividindo a distância do “offset” (distância entre as linhas A e F) pelo diâmetro da cabeça femoral, e quando a relação entre o desnível e o diâmetro da cabeça femoral é < 0,15 a 0,17 é indicativo de deformidade do tipo came.
Figura (12 a-b): Representação esquemática (12a) do “offset” femoral (O) em paciente que apresenta “bump” ósseo (asterisco verde) na imagem seccional no plano transversal oblíquo, obtido conforme imagem de referência no alto à esquerda, em que a distância entre a linha tangente à cabeça femoral (linha F) e a que passa pela margem anterior do colo (linha A), ambas paralelas à linha que passa pelo centro da cabeça e do eixo longitudinal do colo femoral (linha C), está reduzida pela deformidade. Imagem radiográfica do quadril em perfil (12b) mostrando caso de IFA do tipo came, onde se identifica o “bump” ósseo (seta verde).
Ângulo alfa – uma forma de tentar quantificar a deformidade da porção anterossuperior da transição cabeça-colo femoral, sendo definido como o ângulo entre a linha que passa pelo centro da cabeça femoral e o centro do ponto mais estreito do eixo longitudinal do colo femoral e a linha que passa pelo centro da cabeça femoral e o ponto onde a cortical anterior do colo femoral está fora do contorno do círculo que demarca a cabeça femoral (figura 13). Foi inicialmente descrito na incidência radiográfica "cross-table" ou perfil cirúrgico, onde foi validado, e também usado na avaliação do “off-set” femoral (figura 14), e depois extrapolado para as incidências de Dunn 45° e Ducroquet e também para os métodos seccionais no plano axial oblíquo, no eixo longo do colo femoral no nível da fóvea. O aumento do ângulo alfa reflete o grau de deformidade da porção proximal da convexidade cortical anterior da transição da cabeça com o colo femoral.
Figura 13: Representação esquemática do ângulo alfa na imagem seccional no plano transversal oblíquo obtido conforme imagem de referência no alto à esquerda, definido como o ângulo entre a linha C que passa pelo centro da cabeça femoral e o centro do ponto mais estreito do eixo longitudinal do colo femoral (linha dupla preta) e a linha A que passa pelo centro da cabeça femoral e o ponto onde a cortical anterior do colo femoral está fora do contorno do círculo que demarca a cabeça femoral (ponto vermelho).
Figura 14: Radiografia na incidência "cross-table" (perfil cirúrgico), usada tanto para avaliar o “offset” femoral (OS), já descrito nas figuras 11 e 12, assim como o ângulo alfa, formado pela linha C (em azul), que passa pelo centro da cabeça femoral e o centro do ponto mais estreito do eixo longitudinal do colo femoral, e pela linha A (em verde), que passa pelo centro da cabeça femoral e ponto onde a cortical anterior do colo femoral está fora do contorno do círculo que demarca a cabeça femoral.
Inicialmente foi considerado anormal quando superior a 50°, mas esse limite tem mudado ao longo dos anos para evitar falso-positivos, sendo cada vez utilizados como referência para IFA do tipo came atualmente valores superiores a 55-60°. Sua utilização, entretanto, é controversa pela sua moderada reprodutibilidade, baixa especificidade (56% para ângulos > 55°) e muita variação na faixa de valores normais. Alguns autores verificaram que a presença do came mais acentuado (ângulo alfa > 65°) foi associada com o desenvolvimento de osteoartrite radiográfica e, para cada grau de aumento no ângulo alfa, ocorreu um aumento de 5% no risco de osteoartrite e um aumento de 4% no risco de realização de artroplastia total de quadril. O aumento do ângulo alfa relacionado a deformidade do tipo “came” mais acentuada tem também correlação com lesões labrais mais extensas. Na figura 15 está representado como o “bump” ósseo leva ao aumento do ângulo alfa.
Figura 15: Representação esquemática do ângulo alfa na imagem seccional no plano transversal oblíquo em paciente com deformidade tipo came, onde o ponto onde a cortical anterior do colo femoral está fora do contorno do círculo que demarca a cabeça femoral (ponto vermelho) está mais medializado pela deformidade, levando ao aumento do ângulo alfa (seta dupla preta).
Retrotorção femoral – também pode ser uma causa de IFA de causa femoral primária ou secundária a fraturas no colo femoral. Normalmente, o colo femoral está orientado anteriormente em relação aos côndilos femorais, avaliação que é feita pela tomografia computadorizada através do ângulo entre o eixo longo do colo femoral e a linha que tangencia a margem posterior dos côndilos femorais (linha bicondiliana posterior). Para isso são obtidas aquisições tomográficas do quadril e do joelho na mesma séria de forma que as imagens seccionais possam ser combinadas para a mensuração do ângulo (figura 16). Em nosso meio o mais frequente é considerar os termos versão e torção femorais como sinônimos, mas alguns autores fazem algumas distinções. Para mais detalhes sobre essa questão e as demais medidas do quadril e acetábulo consulte a página NOTAS & MEDIDAS / BACIA QUADRIL.
Figura 16: Representação esquemática de imagens seccionais sobrepostas do joelho e quadril para cálculo do ângulo de torção femoral, formado pela linha C, que passa pelo centro de rotação da cabeça do fêmur e a porção mais estreita do colo femoral e a linha bicondiliana posterior (linha B).
Os valores normais variam com a idade, sexo e etnia, mas em geral é usado como referência valores de antetorção em torno de 10 a 20° para adultos, tendendo a ser um pouco maior em mulheres. A redução da anteversão / retroversão reduz a rotação interna e predispõe a impacto anterior, além de estar relacionada a osteoartrite, instabilidade femoropatelar, alterações na marcha e epifisiólise da cabeça femoral (figura 17).
Figura (17a-b): Representação esquemática de imagens tomográficas sobrepostas do joelho e do quadril comparação entre a antetorção normal (17a) e a retrotorção (17b) que pode estar associada ao IFA do tipo came.
Coxa vara – definida como redução do ângulo cefalodiafisário (< 125°), achado que também está relacionada a IFA. O ângulo cefalodiafisário, ou ângulo de inclinação femoral, é formado pelas linhas que passam pelo eixo longo do colo e da diáfise femoral (figura 18). É considerado normal no adulto valores que variam de 120-125° a 135-139° e pode tanto ser avaliado pela radiografia AP da bacia quanto no plano coronal na TC e RM.
Figura 18 (a-b): Representação esquemática do ângulo cefalodiafisário normal (18a) e reduzido, achado conhecido como coxa vara (18b). O ângulo é formado pelas linhas que do eixo longo do colo femoral passando pelo centro da cabeça femoral (linha C) e o eixo longo da diáfise femoral (linha F).
Os pacientes com IFA apresentam maior incidência de herniações sinoviais (herniation pits) na zona de impacto na transição cabeça/colo femorais, caracterizadas como imagens císticas que podem ser circundadas por fino halo de esclerose e que ocorrem em cerca de 33% dos pacientes, apesar de nem sempre estarem relacionadas a sintomas, achado que estava presente no caso desse mês. Acredita-se que essas alterações fibrocísticas podem ser resultantes do estresse mecânico exercido pela cápsula articular e musculatura anterior, assim como secundárias a IFA, embora na maioria dos casos seja um achado incidental assintomático.
O labrum é a primeira estrutura articular envolvida no IFA do tipo came e ocorre na transição condrolabral, onde a cartilagem acetabular é avulsionada do labrum devido a uma força de cisalhamento entre a cabeça e a cartilagem, gerando frequentemente uma lesão tipo “carpete”, em que a cartilagem tem aparência inicialmente normal, porém descolada do osso subcondral. A irritação recorrente do labrum costuma levar a ossificação reativa, particularmente na base labral, achado que também estava presente no caso desse mês e que pode progredir para um aumento da profundidade do acetábulo que contribui para a piora do impacto, achado que pode se manifestar nas radiografias como um duplo contorno acetabular (figura 19). O estresse do impacto entre o fêmur e o acetábulo pode levar a fratura na margem acetabular, com separação de um osso acetabular proeminente do acetábulo.
Figura 19 (a-b): Radiografias em AP do quadril esquerdo de paciente de 45 anos (19a) mostrando ossificação da base labral (seta branca) e aposição óssea da margem acetabular, visível como um duplo contorno (setas pretas). Em outro paciente de 36 anos (19b) caso ilustrando que a ossificação pode ser separada da margem acetabular devido ao estresse anormal do impacto, e o fragmento destacado é denominado os acetabuli (seta amarela). Note que esse paciente também apresenta deformidade em cabo de pistola (seta verde). Modificado de AJR 2007; 188:1540–1552.
A área de acometimento da cartilagem costuma ser maior no IFA do tipo came em comparação com o impacto “pincer”, com fissuras e delaminação condrais. Entretanto, em ambos os tipos de impacto não há redução significativa do espaço articular nas fases iniciais antes do estabelecimento de osteoartrose.
Com o surgimento de osteoartrite nas fases mais avançadas do impacto, os osteofitos podem contribuir para a piora do IFA, tanto aumentando a cobertura da cabeça femoral, quanto reduzindo o “off-set” da cabeça-colo femoral.
É importante enfatizar que a morfologia do IFA não deve ser baseada somente na análise da transição cabeça/colo femorais. A morfologia do acetábulo, outros aspectos da morfologia femoral, e as versões femorais e acetabulares influenciam na ocorrência ou não de sintomas no IFA. Além disso, a coexistência de instabilidade e outras anormalidades não são incomuns. Este fato reforça a importância de um exame físico apropriado no diagnóstico do IFA e a análise mais global e contextualizada dos métodos de imagem.
No quadro 2 estão a principais diferenças entre os tipos de IFA came e "pincer".
Quadro 2: Principais diferenças entre os tipos de IFA came e "pincer".
O tratamento do IFA costuma ser conservador na maioria dos casos, com modificação das atividades, evitando extremos de flexão e musculação agressiva com flexão com pesos, fisioterapia e analgesia. A abordagem cirúrgica é reservada a casos selecionados, com o objetivo de promover o arco de movimento funcional livre de impacto entre o fêmur e o acetábulo, geralmente com a ressecção das deformidades e reparo / debridamento condrolabral, podendo ser por via artroscópica, aberta ou uma combinação de ambas.
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Sou fã do seu trabalho. Essas aulas de impacto came e pincer sao muito didaticas. Trouxeram luz a muitas duvidas.Muito Obigado.