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Miosite ossificante

Paciente do sexo feminino de 46 anos, com tumoração indolor na coxa direita. Solicitada ressonância magnética (RM) da coxa:


Figura 1 (a-c): Imagens de RM de ambas as coxas no plano coronal (estudo comparativo) nas ponderações STIR (1a), T1 (1b) e T1 com supressão de gordura (SG) após a administração venosa de contraste (1c). Gd – gadolínio.


Figura 2: Imagem de RM no plano sagital na ponderação STIR.


Figura 3 (a-c): Imagens de RM de ambas as coxas no plano transversal (estudo comparativo) nas ponderações STIR (3a), T1 (3b) e T2 (3c).


Figura 4 (a-c): Imagens de RM no plano transversal na ponderação T1 com supressão de gordura (SG) antes (4a) e após a administração venosa de contraste (4b) com subtração das imagens (4c). Gd – gadolínio.



Figura 5 (a-f): Imagens de RM no plano transversal na ponderação T1 com supressão de gordura (SG) durante a administração venosa de contraste (estudo dinâmico).



Descrição dos achados


Figura 1 (a-c)’: Imagens de RM de ambas as coxas no plano coronal (estudo comparativo) mostrando lesão expansiva (setas) no interior do músculo vasto medial direito com alto sinal na ponderação STIR (1a’), sinal intermediário em T1 (1b’) e com realce na sequência T1 com supressão de gordura (SG) após a administração venosa de contraste (1c’). Gd – gadolínio.


Figura 2’: Imagem de RM no plano sagital na ponderação STIR mostrando formação expansiva alongada com sinal elevado e discretamente heterogêneo no músculo vasto medial direito (seta).


Figura 3 (a-c)’: Imagens de RM de ambas as coxas no plano transversal (estudo comparativo) mostrando formação expansiva (setas) no interior do músculo vasto medial direito que apresenta alto sinal na ponderação STIR (3a’), sinal intermediário em T1 (3b’) e sinal discretamente elevado em T2 (3c’).


Figura 4 (a-c)’: Imagens de RM no plano transversal mostrando que a formação expansiva no músculo vasto medial direito (setas) tem sinal hiperintenso na ponderação T1 com supressão de gordura (SG) (4a’) e apresenta impregnação após a administração venosa de contraste (4b’), confirmado na imagem com subtração (4c’). Gd – gadolínio.


Figura 5 (a-f)’: Imagens de RM no plano transversal na ponderação T1 com supressão de gordura (SG) durante a administração venosa de contraste (estudo dinâmico) mostrando o realce progressivo da lesão (setas).



A paciente foi submetida à ressecção da completa da lesão, com controle pós-operatório por RM (figuras 6 e 7):


Figura 6 (a-b): Imagens de RM de ambas as coxas no plano coronal não mais evidenciando a lesão expansiva no interior do músculo vasto medial direito, observando-se no tecido subcutâneo em correspondência faixa fibrocicatricial (setas) com alto sinal na ponderação STIR (6a) e com realce após a administração venosa de contraste (6b). Gd – gadolínio.



Figura 7 (a-c): Imagens de RM da coxa direita mostrando no tecido subcutâneo em correspondência com o local da ressecção cirúrgica faixa fibrocicatricial de baixo sinal em T1 (7a), sinal elevado na ponderação STIR (7b) e com realce pelo contraste (7c). Gd – gadolínio.



Discussão:


O termo miosite ossificante descreve o processo que resulta em proliferação óssea intramuscular, sendo a causa mais comum de ossificação heterotópica. Na ressonância magnética o aspecto se assemelha muito ao sarcoma, fato que levou essa paciente a ser submetida a ressecção da lesão sem complementação com nenhum outro método de imagem.


É essencialmente uma metaplasia do tecido conectivo que resulta em formação de osso em localização extra-óssea, no caso muscular, cuja etiologia ainda permanece desconhecida. Histologicamente, observa-se tecido de granulação vascularizado que se diferencia em osso. A hipótese mais aceita é a de que a cascata de citocinas liberadas pelo dano tecidual decorrente de trauma, isquemia ou inflamação na transição endotelialmesenquimal faria com que as células-tronco mesenquimais se diferenciassem em condrócitos e osteoblastos. É uma condição benigna e autolimitada, considerada lesão do tipo “don’t touch” na maioria dos casos.


A miosite ossificante típica é uma condição adquirida, embora exista uma rara doença genética conhecida como fibrodisplasia ossificante progressiva em que também há ossificação intramuscular similar, mas em múltiplos locais, o que resulta em deformidade progressiva com perda dos movimentos.


Existem duas formas de miosite ossificante adquirida:

  • Neurogênica – associada geralmente a paraplegia e poliomielite

  • Não-neurogênica

- Pós-traumática – a forma mais comum, também denominada de miosite ossificante circunscrita, correspondendo a 60 a 75% dos casos.


- Idiopática – sem evento precipitante conhecido, denominada também de forma pseudomaligna, Alguns autores preconizam que a forma idiopática também poderia ser pós-traumática, mas sem que o paciente recordasse ou valorizasse o evento traumático prévio.


A maioria dos pacientes refere algum trauma específico ou pequenos traumatismos de repetição, como os que ocorrem em esportes como o futebol. Acredita-se que 9% dos casos de contusão muscular evoluem com miosite ossificante. É uma condição também bem prevalente em indivíduos paraplégicos e recentemente foram descritos casos isolados de miosite ossificante no braço secundária à vacinação por Covid. Porém, de 25 a 40% dos pacientes não se recordam de nenhum evento traumático, o que dificulta o diagnóstico.



Epidemiologia e quadro clínico


A miosite ossificante pode ocorrer em qualquer faixa etária, embora seja rara em crianças com menos de 10 anos e predomine em adultos jovens, com mais da metade dos casos ocorrendo nas segunda e terceira década de vida, com maior prevalência em homens, provavelmente relacionado à maior prática de esportes.


Os locais mais comuns de acometimento são os grandes músculos da coxa (principalmente o músculo quadríceps) e do braço (mais comum o músculo braquial), que correspondem a cerca de 80% dos casos. Outras localizações seriam os músculos deltoide e adutores, embora localizações atípicas sejam eventualmente reportadas, como músculos intercostais, abdominais e do pescoço. Uma variante seria o acometimento dos dedos das mãos e pés, situação conhecida como pseudotumor fibro-ósseo dos dedos.

No caso dos pacientes paraplégicos o joelho e o quadril são os locais mais acometidos. A paniculite ossificante é uma condição semelhante à miosite ossificante, porém acometendo o tecido subcutâneo. Quando há acometimento de tendões ou fáscias é denominada fascite ossificante.


A miosite ossificante apresenta três fases características:

Fase precoce – antes da ocorrência da ossificação, podendo durar de 1 a 4 semanas. Nessa fase há proliferação de células mesenquimais que secretam matriz mixoide, assim como de fibroblastos com intensa mitose, resultando na aparência pseudofibrossarcomatosa, tanto na imagem quanto na histologia. É a fase de crescimento rápido da lesão. Embora inespecífico, a avaliação laboratorial nessa fase pode demonstrar aumento dos níveis séricos de proteína C reativa, VHS e prostaglandina-E2.


Fase intermediária – ocorre de 4 a 8 semanas após o evento inicial, com os fibroblastos se diferenciando em osteoblastos, com produção de matriz osteoide imatura na periferia da lesão, que já é visível como calcificações nas radiografias que costumam ter aspecto lamelar e periférico. Na patologia o aspecto é de uma lesão pseudo-osteossarcomatosa. Nessa fase a lesão tende a não apresentar crescimento e pode ser encontrado aumento dos níveis séricos de fosfatase alcalina e creatinofosfoquinase (CPK), o que costuma ser um preditivo da gravidade da lesão.


Fase tardia ou madura – caracterizada pela produção de osso lamelar maduro na periferia da lesão e, com o passar dos meses, pode ser observada metaplasia gordurosa no centro da lesão. Em alguns casos pode haver regressão da lesão.


As fases da miosite ossificante resultam em um aspecto de organização zonal típica (figura 8):

Figura 8: Representação esquemática da organização zonal típica da miosite ossificante.


Os pacientes com relato de trauma frequentemente reportam dor muscular que persiste por mais tempo que o esperado para um estiramento ou contusão. Os sintomas tendem a melhorar com a maturação da lesão. Entretanto, muitos pacientes relatam apenas a presença de formação expansiva com crescimento variável sem história de trauma, o que aumenta a suspeita de lesão maligna. Dependendo do seu tamanho e localização, podem ocorrer sintomas relacionados à compressão ou ao atrito da lesão com as estruturas adjacentes, em especial os feixes neurovasculares, causando parestesias, fraqueza, linfedema e trombose.


Avaliação por imagem


Radiografias

Na fase inicial as radiografias costumam ser normais ou apenas com aumento das partes moles. Ocasionalmente pode ser identificada discreta reação periosteal no osso adjacente relacionada a hematoma periosteal ou ao processo inflamatório local.


As calcificações da miosite ossificante começam a ser identificadas nas radiografias na fase intermediária, geralmente após 2 a 6 semanas do evento precipitante (figura 9).

Inicialmente, as calcificações predominam na periferia e apresentam aspecto lamelar e circunferencial, sendo que o aspecto clássico da calcificação periférica bem circunscrita pode ser aparente só após 2 meses. Tipicamente o centro é radiolucente e pode ser observada uma fenda radiolucente que separa a lesão do osso adjacente, conhecido como “sinal da corda”. Na fase tardia as calcificações ficam mais evidentes.


Figura 9: Radiografia do fêmur de paciente de 17 anos que sofreu evento traumático no futebol 6 semanas antes, mostrando calcificações com aspecto lamelar (seta) secundárias à miosite ossificante. Modificado de https://radsource.us/myositis-ossificans.



Tomografia computadorizada

Na fase mais inicial pode ser detectada apenas uma formação expansiva com a mesma densidade ou um pouco mais hipodensa que o músculo, embora as calcificações sejam identificadas mais precocemente em comparação com as radiografias, com o halo periférico de calcificação usualmente visível entre 4 e 6 semanas. A fenda entre a lesão e o osso normal (“sinal da corda”) é também de mais fácil detecção (figura 10). Em alguns casos pode ser vista uma ponte óssea entre a lesão e o córtex ósseo adjacente.


Figura 10: Imagem de tomografia computadorizada do plano transversal de outra paciente do sexo feminino de 42 anos, com massa palpável e relato de lesão durante atividade física há 6 semanas, mostrando miosite ossificante com halo de calcificação bem visível (seta branca) circundando centro mais hipodenso, semelhante à densidade do músculo normal. Note que há uma faixa separando a miosite ossificante do osso ilíaco normal (setas amarelas). Modificado de EFORT Open Rev 2021;6:572-583.



Ultrassonografia

O padrão zonal também pode ser identificado na ultrassonografia (USG), tipicamente com um halo relativamente hipoecoico mais externo com vascularização ao Doppler colorido secundária à inflamação (figura 11), circundando uma zona hiperecoica com sombra acústica posterior decorrente da calcificação periférica e uma porção central mais hipoecoica e heterogênea. Na fase mais precoce pode ser identificada vascularização central ao Doppler colorido.

Figura 11 (a-b): Imagens de USG da coxa de outra paciente de 72 anos com miosite ossificante mostrando no modo B (11a) massa sólida hipoecoica (setas brancas) com vascularização periférica ao Doppler colorido (seta vermelha) no interior do músculo adutor curto (11b). Modificado de Indian J Musculoskelet Radiol 2021;3:125-128.


Com a maturação da lesão a vascularização tende de desaparecer e a sombra acústica ficar mais pronunciada (figura 12).

Figura 12 (a-b): Imagens de USG da coxa da mesma paciente da figura 11 realizada após 4 semanas mostrando nos planos longitudinal (12a) e transversal (11b) imagens hiperecoicas (setas brancas) com intensa sombra acústica posterior (setas azuis) representando as calcificações na periferia da massa identificada no estudo prévio. Modificado de Indian J Musculoskelet Radiol 2021;3:125-128.



Ressonância magnética

Apesar de a RM ser o método de escolha na avaliação das massas de partes moles, no caso da miosite ossificante costuma ser necessária complementação com radiografias e/ou tomografia computadorizada porque as calcificações não são de detecção tão fácil e a aparência pode mimetizar outras alterações, principalmente uma lesão agressiva, como o sarcoma.


O aspecto da miosite ossificante na RM também depende do estágio de evolução:


Na fase aguda tipicamente apresenta sinal isointenso em T1 e heterogêneo predominantemente hiperintenso em T2, com edema circunjacente. A impregnação pelo contraste pode ser difusa ou periférica, principalmente nos pacientes que ainda apresentam hematoma na porção central.

A alteração do sinal em algumas fibras com outras fibras musculares intactas adjacentes resultam em um padrão de sinal estriado nas imagens paralelas ao plano do músculo, considerado um sinal bem típico da miosite ossificante na fase inicial. Já no plano transversal ao músculo o hipersinal / realce pelo contraste intercalado com o isossinal das fibras musculares normais pode dar um aspecto descrito como “tabuleiro de damas” (“checkerboard”).


Na fase intermediária o sinal em T1 permanece isointenso na maioria dos casos, mas também podem ser encontradas lesões com sinal hipointenso ou hiperintenso. Em T2, as lesões continuam com sinal heterogêneo predominantemente hiperintenso, e o realce pelo contraste persiste, porém tende a ser menos intenso em comparação com a fase aguda. Os osteoblastos já começam a produzir osso, mas as calcificações costumam ser muito tênues na RM, embora um halo de baixo sinal possa já ser visível, o que torna o diagnóstico de miosite ossificante bem provável.


Na fase tardia o edema tende a regredir e o halo de baixo sinal secundário à calcificação já costuma estar presente. O sinal tende a ser variável, desde a persistência do sinal heterogêneo até uma aparência similar ao osso nativo adjacente.


Embora o realce pelo contraste na miosite ossificante costume predominar na periferia, a impregnação pode ser difusa.


Na cintilografia óssea a captação pelo radiotraçador é inespecífica, e é mais evidente nas fases precoces, com redução gradativa na medida em que ocorre a maturação da lesão. No PET-CT pode ocorrer intensa captação pelo FDG, mimetizando lesões malignas, não sendo útil para o diagnóstico.



Diagnósticos diferenciais


Sarcoma – é o diagnóstico diferencial mais importante a ser excluído, além de outros tumores como o osteossarcoma primário extra-esquelético e o osteossarcoma paraosteal. O halo de calcificação periférico, quando presente, é praticamente patognomônico da miosite ossificante. Porém, nas fases aguda e intermediária até mesmo a biópsia pode resultar em diagnóstico falso positivo devido à sua aparência pseudo-osteossarcomatosa. Por isso, é fundamental conhecermos os achados de imagem que apontam mais para miosite ossificante, resumidos no quadro 1:

Quadro 1: Quadro mostrando algumas semelhanças e as principais diferenças entre a miosite ossificante e o sarcoma nas partes moles.


Doença de depósito de hidroxiapatita – causa clássica de calcificação nas partes moles, que costuma se localizar em tendões ou bolsas, sendo mais rara a localização intramuscular isolada. Pode ser confundida com a miosite ossificante nas fases aguda e intermediária, mas os fatores que ajudam na diferenciação são a ausência de formação expansiva e a presença de ossificação e calcificações periféricas que não ocorrem na doença de depósito, que geralmente também não está associada a histórico de trauma.


Calcinose tumoral – é uma desordem familiar rara. A calcinose também pode ocorrer em pacientes com insuficiência renal. Nesses casos, as calcificações tendem a ser mais densas e sólidas em comparação com as da miosite ossificante e as calcificações são difusas e não periféricas. Pode ser identificado nível líquido pela presença de leite de cálcio.


Mionecrose calcificada – condição rara considerada uma complicação tardia do trauma, caracterizada por uma massa calcificada fusiforme em um compartimento muscular, acometendo quase que exclusivamente os membros inferiores, principalmente nas pernas.



Miosite e abscesso – as condições infecciosas, como abscesso intramuscular, miosite focal e osteomielite costumam apresentar quadro clínico sugestivo, com febre, edema doloroso, alguma condição precipitante, como porta de entrada na pele, e achados laboratoriais como leucocitose e aumento do VHS e da proteína C reativa. No caso da miosite o realce pelo contraste é difuso e na presença de abscesso a impregnação é proeminente na periferia e ao redor da coleção.


Hematoma – as condições infecciosas, como abscesso intramuscular, miosite focal e osteomielite costumam apresentar quadro


Hematoma – também pode se apresentar como uma massa heterogênea na RM, mas nas fases mais agudas o aspecto hiperdenso na TC e o hipersinal em T1 refletindo o conteúdo hemático sugerem o diagnóstico. O realce é apenas periférico e não costuma ser tão intenso como nos casos infecciosos,



O tratamento da miosite ossificante costuma ser conservador, uma vez que o processo tende a ser autolimitado. A cirurgia é geralmente reservada para os casos com sintomas persistentes, com dor intratável e complicações decorrentes dos efeitos compressivos da lesão.


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