Pesquisadores de diferentes áreas estão questionando se os hábitos digitais estariam “atrofiando” nossa habilidade de leitura e compreensão. E, de fato, muitas pessoas estão se queixando que não conseguem mais se concentrar em textos longos ou "mergulhar" na leitura tão profundamente quanto conseguiam antes.
E muitos estão percebendo que a forma de muitas pessoas processarem as informações que recebem está comprometida. Uma situação bem comum é o que vemos nos comentários na internet e redes sociais, onde alguém posta um texto informativo curto, claro e objetivo, como:
“No próximo sábado, dia xx/xx/xx, estaremos com uma promoção especial! Quem comprar 3 doces, de qualquer sabor, terá desconto de 30%, mas apenas para pagamento em dinheiro. Aproveite porque é só nesse dia!”
Consegue adivinhar quais seriam as perguntas mais comuns?
“A promoção vale para o mês todo?”
“Pode pagar no cartão?”
“Quem comprar 2 doces tem desconto?”
“O desconto é de quanto para quem pagar em dinheiro?”
“Quais sabores estão incluídos na promoção?”
Ou seja, a grande maioria das perguntas se refere a informações que já estavam explícitas!
A neurocientista cognitiva americana Maryanne Wolf, pesquisadora da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) acredita que a prática cada vez mais comum de apenas "passar os olhos" superficialmente em múltiplos textos e postagens online podem estar dilapidando nossa capacidade de entendimento e análise crítica, o que tem o poder de impactar nossa performance individual. E, conforme a informação se torna onipresente, o sucesso não se resume a saber mais, mas na capacidade de pensar de forma crítica e criativa, que são, ironicamente, as habilidades que a mídia digital prejudica ao reduzir nossa capacidade de prestar atenção. E isso é ainda mais grave entre as gerações que nasceram na era digital.
Professores de ensino fundamental e médio têm percebido que os alunos parecem achar exaustivo e não possuem resistência para ler textos complexos ou longos, solicitando pausas constantes, com alguns até desistindo por completo de leituras mais extensas.
O problema é que o ato de prestar atenção funciona como porta de entrada para formas mais profundas de aprendizado. Sem a capacidade de prestar atenção é difícil consolidar o conhecimento na memória, tornando extremamente complicado interpretar, analisar, resumir, criticar e chegar a uma conclusão sobre a informação recebida.
Essa falta de paciência nos dias de hoje em relação a textos e aulas mais longas tem feito muitos professores simplesmente dividirem os assuntos em partes menores, disseminando a ideia de que algo mais curto é melhor. Mas, de acordo com o neurocientista William Klemm, dividir lições em partes menores pode ser prejudicial, porque isso pode impedir que os alunos tenham uma compreensão mais ampla do que é ensinado, uma vez que os estudantes precisam de tempo para se envolver com um tema e que existem habilidades valiosas envolvidas no processo de acompanhar um argumento complexo que é apresentado linearmente em tempo real.
Mas, em termos práticos, quais as razões para essa falta de paciência na leitura? De acordo com os principais estudos na área os quatro principais fatores seriam:
O mantra “Não tenho tempo”.
Na verdade, ninguém tem tempo, porque tempo não é uma possessão. Eu não tenho tempo, eu faço ou deixo de fazer algo com o tempo disponível. Sendo honestos, se nós não tivéssemos tempo, não saberíamos de tantas notícias, veríamos tantas fotos de famosos no Instagram, não teríamos maratonado tantas séries da Netflix, nem assistido tantas notícias e esportes e não faríamos parte de tantos grupos no WhatsApp, entre tantas outras coisas. O problema é que esse pensamento insistente de que “não temos tempo” cria um bloqueio para diversas atividades, como conversar pessoalmente sobre assuntos variados (“não tenho tempo pra papo furado”), ler sobre assuntos que não parecem diretamente ligados à nossa profissão (“não vou perder tempo lendo sobre isso com tanta coisa para estudar”) ou nos demorar mais tempo do que achamos razoável em um assunto específico (“pra que perder uma semana lendo só sobre um assunto??”).
Você lê muito, só que muito pouco sobre muita coisa
Se nós conseguíssemos mensurar o número de palavras que lemos e o tempo que gastamos com vídeos e imagens em uma semana, com certeza as palavras seriam equivalentes a um livro inteiro e os vídeos durariam horas. O problema é que é muita quantidade de conteúdos superficiais, que acabamos consumindo na ilusão de que maior quantidade é tempo mais bem aproveitado. Se conseguíssemos aceitar o fato de que precisamos respeitar o tempo que cada assunto merece, conseguiríamos focar com mais tranquilidade em textos e aulas longas, absorvendo seu conteúdo, sem ficar na agonia de que “estou perdendo tempo”.
Você conta páginas e minutos em vez de experiências
Imagine se fosse possível voltar no tempo e ter uma conversa com Leonardo da Vinci em uma tarde. Você ficaria pensando “ai, meu deus, estou deixando de ver vídeos, de postar no Instagram, podia estar dando uma corrida, nesse tempo teria visto 2 episódios da série que ainda não terminei”? Não! Você iria aproveitar cada minuto da experiência por inteiro, pois você só teria aquela tarde para conversar com uma pessoa incrível. Só que isso vale para tudo! Muitas vezes deixamos para depois o que não sabemos se poderemos ter novamente. Existem momentos que são mágicos – às vezes podemos desperdiçar uma conversa que mudaria nossa vida ou transformaria uma relação, e mesmo que consigamos nos encontrar e conversar com a mesma pessoa depois, o momento já é outro, e aquele “timing” foi perdido.
A dopamina digital
Os dispositivos digitais e os softwares são concebidos para nos fazer prestar atenção a eles, não importa o que estejamos fazendo. Novas informações criam um fluxo de dopamina no cérebro, que nos faz sentir bem. A promessa de novas informações compele seu cérebro a buscar uma nova dose de dopamina, e esses padrões de comportamento começam a criar caminhos neurais, que se tornam hábitos inconscientes: estou trabalhando em algo importante, mas não consigo deixar de ver meus e-mails, verificar o Twitter, Facebook, Instagram, WhatsApp... Imagine a agonia de assistir uma aula ou ler textos mais longos pensando em tudo que estamos deixando de conferir e interagir! O pensamento profundo e imersivo que produziu muitas das mais importantes conquistas da civilização agora compete com a compulsão de estar o tempo todo online...
"A leitura é uma necessidade biológica da espécie. Nenhum ecrã e nenhuma tecnologia conseguirão suprimir a necessidade de leitura tradicional".
Umberto Eco
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