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Rachadura na parede



Muito tem se discutido sobre o papel do especialista na radiologia, e a melhor forma de enxergarmos nosso papel é imaginar situações em que nós precisamos da opinião de um especialista em outra área – quais são as expectativas? Como costumamos julgar o profissional? O que inspira confiança e o que nos faz buscar outra opinião?


Para esse exercício, vamos usar como exemplo o surgimento de rachaduras em uma parede de um prédio, o que levou à solicitação de um parecer de um engenheiro civil. Esse tipo de situação é o mesmo que leva à solicitação de um exame de imagem:



A expectativa


Ninguém pede um parecer para ouvir o óbvio. Você gostaria de receber como resposta de um perito “o prédio apresenta rachaduras na parede” e nada mais?

É a mesma decepção de um médico assistente recebendo um laudo que apenas repete o que ele já sabe. Qualquer semelhança com frases do tipo “Artroplastia do ombro gerando artefatos” não é mera coincidência. A informação que se busca é se existe algum problema com a prótese, porque a existência da prótese e de artefatos já são informações conhecidas.


E existem outras formas de descrever sem falar nada. Uma delas seria abusar de termos técnicos para parecer ter mais conteúdo. Como, em vez de só colocar “o prédio apresenta rachaduras na parede”, escrever “destaca-se a presença de rachaduras, trincas e fissuras longitudinais e oblíquas de extensão, trajeto e espessura variáveis na edificação”. O que mudou na prática? Apenas uma descrição mais pomposa e longa, que forneceu a mesma informação.


Outra forma é exagerar nos detalhes, imaginando que com isso vamos passar a impressão de sermos mais atentos e detalhistas. Ou seja, para evitar descrever a foto do post de forma muito pobre e genérica, colocar “rachaduras, trincas e fissuras longitudinais e oblíquas de extensão, trajeto e espessura variáveis, destacando-se rachadura mais superior com espessura mínima de 0,2 cm e máxima de 1,5 cm e 25,7 cm de extensão que apresenta leve ondulação do trajeto na porção lateral esquerda, fissura intermediária entre a rachadura superior, já descrita acima, e rachadura inferior com espessura mínima de 0,2 cm e máxima de 0,9 cm, ambas com extensão em torno de 24,9 cm, sendo que entre as rachaduras e fissuras são observadas finas trincas oblíquas com cerca de 3 a 4 cm de extensão”. Essa forma de descrição consegue ainda ser pior, porque além de prolixa e confusa, também não fornece nenhum acréscimo relevante para a conduta, já que nenhum dado descrito sinaliza se há dano estrutural ou não.


Como atender às expectativas?


O que importa são os dados que ajudam na tomada de decisão, e para isso temos que saber o significado de cada alteração e passar essa informação adequadamente.

O que não tem importância não deve receber tanta atenção e detalhe, podendo apenas ser citada, ficando a critério do médico assistente valorizar ou não. Já as alterações que podem requerer uma abordagem mais específica devem ser sinalizadas com mais detalhes. Uma lesão parcial do manguito rotador não deve ser só citada superficialmente, porque dependendo do acometimento, a conduta pode ser conservadora ou cirúrgica.


Descrever tudo com muitos detalhes e sempre associado a algo anormal (como associar qualquer quantidade de líquido a bursite ou tenossinovite) acaba confundindo o solicitante em relação ao que deve ser valorizado. O mesmo acontece ao descrevermos achados sem valor ou sem relação com o problema, como edema em partes moles que é apenas extensão do líquido relacionado a outra alteração – como edema medial secundário a perimeniscite, que pela descrição pode parecer que o paciente tem, além da lesão meniscal, estiramento do ligamento colateral medial, peritendinite do semimembranoso e bursite da pata anserina, confundindo qual é o achado realmente responsável pelos sintomas.


E uma questão importante quando a conduta pode ser mais drástica é pesar o custo-benefício. Um prédio com risco de desabar pode ser consertado, mas vale a pena? É um prédio histórico ou apenas um prédio velho e feio que seria bem melhor ser demolido? O mesmo ocorre com a conduta cirúrgica: em teoria, roturas completas ou que acometem mais de 50% da espessura tendínea do supraespinhal seriam cirúrgicas. Mas, vale a pena em um paciente sedentário e com alto risco cirúrgico? Ou em um paciente já com atrofia muscular? O prognóstico é o mesmo em uma rotura aguda traumática ou em um paciente que apresenta delaminação intrassubstancial extensa associada? Saber a importância desse tipo de informação faz muito mais diferença do que a descrição minuciosa de detalhes sem relevância para a tomada de decisões.


E a forma como descrevemos também influencia o grau de confiança no laudo. Descrições pobres demais podem dar a impressão que o trabalho foi feito às pressas e que não analisamos tudo com a devida atenção e cuidado. Se limitar demais à indicação principal também nem sempre é uma boa opção. Se o perito chamado para ver a rachadura na parede detecta um azulejo quebrado na piscina que poderia acarretar dano futuro, sinalizar pode ser bom, mesmo sem ter a ver com o problema principal, porque mostra atenção aos detalhes e de ser um profissional confiável e preocupado em dar todas as informações relacionadas à segurança. Já ignorar pode levantar dúvidas em relação à atenção aos detalhes ou ao comprometimento - achar que estamos agindo pelo princípio do "não fui chamado e nem fui pago pra isso” não costuma ser muito positivo. E, se no futuro ocorrer algum acidente relacionado à piscina, a primeira coisa que vão comentar é "mas aquele perito que esteve aqui antes não viu isso?"


Já detalhar demais coisas sem importância e deixar de dar informações relevantes pode ter efeito contrário ao desejado: em vez de sermos vistos como profissionais detalhistas, passamos a impressão de estarmos tentando esconder nossa falta de conhecimento com descrições extensas que não informam o que realmente interessa. E que podem acabar confundindo o solicitante – imagine a pessoa que está preocupada com a segurança de um prédio e o perito descreve uma discreta rachadura no cantinho do rodapé do depósito que é apenas uma tinta descascada. Nesse contexto, seria uma informação que não ajudaria em nada, apenas faria a pessoa ficar preocupada com a segurança do depósito sem necessidade. Ter esse cuidado de não causar dano e preocupações desnecessárias também deve estar presente nas descrições radiológicas.


Ser especialista em imagem é saber se colocar no lugar dos profissionais solicitantes, fornecendo não só a informação do que estamos vendo, mas traduzindo os achados em relação ao seu potencial significado clínico e que podem influenciar na conduta. E sempre tendo em mente que confiança é fundamental, não exagerando na concisão e nem no excesso de detalhes.



“Melhor falar pouco e dizer tudo do que falar muito e não dizer nada."


1 Comment


Cecília Brito
Cecília Brito
Jul 19, 2023

Patrícia, sou radiologista há 16 anos, contando com o tempo de Residência Médica. Atuo como Radiologista-Geral ou Generalista. Esse termo certamente não existe, mas é o que melhor representa minha condição... e de muitos! Mas não vim aqui falar de mim, mas de você e dos seus textos e aulas... Fantásticas! Reflexivas, ilustrativas, educativas e enxutas! Obrigada. Continue. Por favor...


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