Existem duas situações bem frequentes na radiologia musculoesquelética que foram ilustrados no caso de uma paciente de 68 anos que sentiu dor aguda na panturrilha depois de um movimento brusco na praia e que evoluiu nas semanas seguintes com dor persistente (esse caso foi postado no feed do Instagram do site):
Essa paciente fez um Doppler colorido da panturrilha porque o médico assistente quis afastar a possibilidade de trombose venosa profunda, mas o Doppler veio NORMAL.
Ela fez então uma ressonância magnética (RM) da perna que mostrou uma lesão por estiramento com rotura na junção mioaponeurótica distal do gastrocnêmio medial com edema de permeio às fibras musculares do seu terço distal e também edema difuso no músculo sóleo, como pode ser visto na imagem ao lado. A tendência de muitos radiologistas seria considerar o edema no sóleo também consequente ao estiramento, já que é inequívoca a rotura no gastrocnêmio e pode haver estiramento concomitante destes músculos.
Mas, se olharmos com atenção, existem imagens sugestivas de falhas de enchimento nas veias intramusculares no sóleo. E no plano transversal essas im agens tem sinal discretamente elevado na ponderação T1, o que fala a favor de trombos no interior do vaso:
Esse tipo de situação dá margem para 2 tipos de erro cognitivo: o primeiro eu chamo de erro do “tubarão branco” (erro de percepção), quando a alteração está presente, mas não é identificada, igual ao filme, em que você está de boa na praia sem perceber que tem um tubarão rondando...
Esse erro ocorreu no Doppler e não é uma situação rara: a análise dos vasos ficou restrita aos locais mais comuns de trombose e aos vasos que chamam mais atenção, como os vasos poplíteos e as veias no gastrocnêmio. Como o sóleo e os demais músculos do compartimento posterior da perna ficam situados profundamente ao gastrocnêmio, a análise das veias intramusculares é negligenciada, gerando um laudo falso negativo.
Uma das causas desse erro é a falta de um checklist eficiente - se faz parte da rotina avaliar os vasos extra e os vasos intramusculares, com uma ordem dos músculos a ser seguida, essa alteração seria facilmente identificada, como acabou sendo com um Doppler complementar após a RM:
O achado das veias calibrosas com falhas de enchimento e sem fluxo ao Doppler estava bem evidente, não foi visto apenas porque o sóleo não fez parte da rotina do exame!
A segunda situação é a do erro cognitivo que eu chamo de “tubarão baleia”: a alteração é vista (até porque muitas vezes ela é muito evidente), mas não é compreendida corretamente levando a um diagnóstico incorreto. Uma das causas é a falta de conhecimento sobre o assunto. Se você nunca viu ou ouviu falar de um tubarão baleia não vai saber o que é quando encontrar um (mas, para sua sorte, ele é mansinho, rsrs). Diferente do erro que pode ocorrer na RM, em que o edema no sóleo pode ser identificado, mas o fato de existirem as veias mais calibrosas com trombos no interior podem passar despercebidas porque o radiologista nunca viu uma trombose venosa na RM e não sabe como são os aspectos de imagem.
E outros erros cognitivos podem levar a isso: um deles é a satisfação da busca, que ocorre quando encontrarmos uma alteração que já justificaria o quadro clínico. Nesse caso, em um contexto de estiramento, a identificação de edema difuso já nos deixaria "satisfeitos" porque encontramos uma justificativa para o achado que faz sentido dentro do contexto clínico, já que existe uma lesão por estiramento do gastrocnêmio, então é razoável concluir que a alteração no sóleo também é decorrente do estiramento.
Outro erro cognitivo é a “heurística da disponibilidade”, que reflete a tendência de sermos indevidamente influenciados por experiências que nos lembramos mais facilmente, reduzindo a sensibilidade para eventos que não vemos com frequência - nos depararmos com estiramentos na panturrilha em exames de RM da perna é muito mais frequente do que com trombose venosa profunda, então sempre que encontramos edema muscular difuso pensamos primeiro em estiramento.
Outros erros que costumam andar juntos são o viés de confirmação, descrito como “a tendência a valorizar muito mais os dados que confirmam a nossa hipótese inicial do que os dados que refutam essa hipótese”, parceiro do viés de ancoramento, que é a "tendência a "ancorar-se" a uma referência do passado ou em apenas uma parte da informação na hora de tomar decisões". Isso ocorre porque inconscientemente damos mais valor aos dados que confirmam nossa hipótese ou buscamos com mais vontade dados que corroboram nossa impressão inicial porque nos custa mais mudar de ideia do que continuar com uma ideia que já temos, mesmo quando errada. Da mesma forma, tendemos a menosprezar, ignorar ou não procurar com tanto afinco dados que possam refutar nossa hipótese inicial. Nesse caso, seria depois de pensar em estiramento se fechar a qualquer outra hipótese diferente, como trombose, que também pode cursar com edema muscular.
Ou seja, de Hobbit você passa a Golum:
Primeiro, fica satisfeito porque encontrou o anel, quero dizer, a hipótese diagnóstica. E só pensa nessa hipótese e se agarra a ela como se não existisse mais nada, só buscando (e encontrando) justificativas para confirmar que você está certo. Na verdade, além disso você refuta qualquer argumento que possa levantar dúvidas sobre a sua escolha, ficando com raiva de quem argumenta a favor de outro diagnóstico!
Por fim, uma outra causa de erro é se fechar nas “bolhas” das especialidades. É o que leva ao pensamento de que estou analisando um exame de perna com suspeita de estiramento (exame musculoesquelético), então os vasos estariam fora da minha "bolha", seria do pessoal que analisa as estruturas vasculares nos exames de Doppler e angiografias. Lembre que antes de ser radiologista você é médico, e não pode deixar passar alterações com risco de morbidade e mortalidade! Faz parte dos diagnósticos diferenciais nos exames musculoesqueléticos a análise dos vasos sim, mesmo nos exames sem contraste!
Precisamos sempre lembrar que ter relevância é o que garante a permanência e valorização de qualquer especialidade.
Aproveite para assistir o vídeo no YouTube com discussão de casos sobre esses 10 erros mais comuns na avaliação das lesões musculares e o blog "Errei logo no músculo"! que fala também sobre erros diagnósticos nas lesões musculares ;)
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