História clínica
Paciente de 50 anos, do sexo masculino, com dor persistente no terço médio da perna direita após partida de futebol há 1 semana. Foi solicitada ressonância magnética (RM) da perna direita:
Figura 1 (a-c): Imagens consecutivas de RM de ambas as pernas no plano coronal nas ponderações STIR (à esquerda) e T1 (à direita) de anterior para posterior.
Figura 2 (a-c): Imagens consecutivas de RM da perna direita no plano sagital na ponderação STIR.
Figura 3 (a-d): Imagens consecutivas de RM no plano transversal de ambas as pernas nas ponderações STIR e T1 de superior para inferior. À direita imagens localizadoras no plano coronal mostrando o nível de cada imagem.
Figura 4 (a-g): Imagens consecutivas de RM no plano transversal na ponderação DP com supressão de gordura da perna direita. À direita imagens localizadoras nos planos coronal e sagital mostrando o nível de cada imagem. Use a seta para passar as imagens.
Figura 1 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM de ambas as pernas no plano coronal nas ponderações STIR (à esquerda) e T1 (à direita) de anterior para posterior mostrando edema na junção mioaponeurótica central do solear (setas amarelas) secundário a estiramento. A porção distal da aponeurose central tem aspecto sinuoso (seta vermelha), o que indica perda da tensão normal. Compare com o aspecto normal da aponeurose central da perna esquerda (seta azul). Há edema de permeio às fibras musculares adjacentes, que têm aspecto bipenado (seta branca). Note espessamento da aponeurose do solear/gastrocnêmio medial de ambas as pernas (setas verdes) de aspecto fibrocicatricial por estiramento(s) prévio(s).
Figura 2 (a-c)’: Imagens consecutivas de RM da perna direita no plano sagital na ponderação STIR mostrando edema na junção mioaponeurótica central do solear (setas amarelas), mas o plano sagital não é o ideal para caracterizar este tipo de lesão.
Figura 3 (a-d)’: Imagens consecutivas de RM no plano transversal de ambas as pernas nas ponderações STIR (acima) e T1 (abaixo) de superior para inferior. À direita imagens localizadoras no plano coronal mostrando o nível de cada imagem. Note que o edema se restringe à junção mioaponeurótica central do solear, que tem aspecto irregular (setas amarelas) em comparação com o aspecto normal da aponeurose central da perna esquerda (setas azuis). É possível também observar nesse plano o espessamento da aponeurose do solear/gastrocnêmio medial de ambas as pernas (setas verdes) de aspecto fibrocicatricial.
Figura 4 (a-g)’: Imagens de RM no plano transversal da perna direita na ponderação DP com supressão de gordura da perna direita com menor espessura e melhor resolução onde é possível identificar edema na junção mioaponeurótica central do solear (setas amarelas) e o espessamento da aponeurose do solear/gastrocnêmio medial de ambas as pernas (setas verdes) de aspecto fibrocicatricial. À direita imagens localizadoras nos planos coronal e sagital mostrando o nível de cada imagem.
Discussão
Os músculos sóleo (ou solear) e gastrocnêmio, que apresenta as cabeças medial e lateral, são os músculos da panturrilha, também conhecidos como tríceps sural, com o músculo sóleo situado profundamente às cabeças medial e lateral do gastrocnêmio, formando a margem inferior da fossa poplítea (figura 5).
Figura 5: Ilustração mostrando a anatomia da fossa poplítea. Modificado de musculoskeletalkey.com.
Quadro 1: Origem, inserção, ação e inervação dos músculos da panturrilha.
O sóleo é inervado por dois ramos do nervo tibial – o ramo posterior, que é responsável pela inervação das porções medial e lateral, e um ramo acessório anterior que inerva a porção anterior bipenada.
O nome sóleo (ou solear) vem do Latim solea, que significa “sandália”, escolhido por representar o seu formato triangular, que alguns também consideram como semelhante a um peixe (figura 6).
Figura 6 (a-b): Peça cadavérica do músculo sóleo (6a) em visão posterior mostrando seu formato semelhante ao de um peixe (6b). Figura 5a modificada de Kimura N et al. Anatomical study of the soleus: Application to improved imaging diagnoses. Clin Anat. 2021 Oct;34(7):991-1001.
O sóleo apresenta duas origens: uma medial, na margem posteromedial da tíbia e outra lateral, na cabeça e terço superior da fíbula (figura 7).
Figura 7: Representação esquemática mostrando as origens e a inserção do músculo sóleo. Modificado de www.ux1.eiu.edu.
O seu ventre muscular é dividido em duas porções principais:
1 - A porção posterior tem aspecto curvo, subjacente e em contato com o músculo gastrocnêmio, e é recoberta por uma aponeurose espessa. O ventre muscular posterior é subdividido em duas porções, uma medial e outra lateral, cada uma apresentando uma aponeurose que tem um componente superficial contínuo com a fáscia muscular/epimísio e outro intramuscular, formado pela penetração da fáscia entre as fibras musculares distalmente. Superiormente, entre as origens e unindo as aponeuroses medial e lateral da porção posterior existe um arco fibroso também conhecido como arco tendíneo.
2 - A porção anterior tem aspecto plano, e é conhecida também como porção anterior bipenada. A porção anterior apresenta uma aponeurose central que se continua com o tendão de Aquiles e, por isso, também recebe o nome de tendão central, que alguns autores denominam como inserção sagital do sóleo.
Nos terços proximais o sóleo localiza-se profundamente ao gastrocnêmio, mas distalmente assume uma posição superfícial.
A aponeurose do sóleo se funde com a aponeurose do gastrocnêmio para formar o tendão de Aquiles (calcâneo), que se insere na margem posterossuperior do calcâneo. O ponto de junção entre as aponeuroses do gastrocnêmio e do sóleo é variável, mas geralmente a aponeurose do gastrocnêmio apresenta uma área sem fibras musculares imediatamente antes de se unir com a aponeurose do solear, conhecida como aponeurose livre do gastrocnêmio, que na maioria dos casos é maior que 1 cm, embora ocasionalmente possa ser ausente.
Kimura et al. estudaram a anatomia do músculo solear através de dissecções sequenciais demonstrando sua complexa anatomia (figura 8).
Figura 8 (a-c): Peça cadavérica mostrando dissecção sequencial do músculo sóleo. Em 8a é possível identificar a porção muscular anterior com seu aspecto bipenado e as origens tendíneas medial e lateral que se continuam com as respectivas aponeuroses. Na margem superior do sóleo há uma banda tendínea que une as origens medial e lateral denominada de arco tendíneo. Em sequência, em 8b com a remoção da porção identificada em 8a já é possível identificar as porções intramusculares das aponeuroses medial e lateral e a inserção sagital da porção muscular anterior bipenada, que é identificada como uma faixa espessa central (asteriscos). Em 8c, após a remição dos tecidos identificados em 8b, a aponeurose central é identificada entre as porções medial e lateral do ventre muscular do sóleo. Modificado de Kimura N et al. Anatomical study of the soleus: Application to improved imaging diagnoses. Clin Anat. 2021 Oct;34(7):991-1001.
Pela sua complexidade, há certa variação na nomenclatura do solear, mas na representação esquemática da figura 9 é possível entender como adaptar a anatomia macroscópica para a avaliação do músculo solear por imagem.
Figura 9: Representação esquemática do músculo solear no plano sagital (visão em perfil), em visão posterior e nos cortes transversais.
O sóleo junto com o gastrocnêmio formam, de uma perspectiva funcional, uma unidade miotendínea que atua na flexão plantar do tornozelo, embora de forma diferente. O músculo sóleo pertence ao grupo de músculos antigravitacionais (juntamente com os extensores da perna, glúteo máximo e músculos do dorso), que mantêm a postura ereta. Como nosso centro de gravidade é anterior à articulação do tornozelo, o corpo tem uma tendência natural de inclinar-se para frente. Isso é contrabalanceado pelo estado de contínua flexão plantar, produzido principalmente pelo sóleo, quando estamos em pé. O músculo gastrocnêmio está mais envolvido na locomoção e ele contribui um pouco na flexão do joelho. Quando o joelho é fletido, a flexão plantar atribuída ao gastrocnêmio é muito limitada, fazendo do sóleo o principal músculo responsável pela flexão plantar. No quadro 2 estão resumidas as principais diferenças entre esses músculos:
Quadro 2: Principais diferenças entre os músculos sóleo e gastrocnêmio.
Avaliação dos estiramentos por imagem
Os métodos de escolha para avaliação dos estiramentos da panturrilha são a ultrassonografia (USG) e a ressonância magnética (RM), ambos apresentando vantagens e desvantagens.
A RM tem maior custo, mas permite a detecção de alterações mais sutis que podem passar despercebidas na USG. A USG é um método mais acessível, porém o fator operador dependente é mais crítico. Uma grande vantagem da USG é que ela permite a realização de manobra que avalia se o movimento do gastrocnêmio e do solear é sincrônico ou assincrônico. Durante a flexão e extensão passivas do tornozelo, normalmente o tríceps sural se movimenta sincronicamente e na mesma direção. Quando há descontinuidade significativa das fibras proximais ao tendão de Aquiles, nota-se ausência de movimentação do gastrocnêmio em relação ao solear.
Porém, a avaliação do sóleo, principalmente nos terços proximais, pode ser difícil pela sua localização mais profunda em comparação com o gastrocnêmio. Por isso, a RM tem se mostrado o método de escolha no caso de suspeita de estiramento do sóleo.
Embora as imagens no plano coronal e sagital sejam úteis, elas são secundárias na avaliação dos estiramentos da panturrilha, sendo o plano transversal o mais importante.
Estiramento dos músculos da panturrilha é muito comum entre atletas profissionais e amadores e, embora possa ocorrer em diversos esportes, é muito comum entre os praticantes de tênis, amadores e profissionais, especialmente na meia idade. Mas, embora classicamente relacionado ao tênis, o estiramento na panturrilha representa até 13% das lesões nos jogadores de futebol e ocorre também em algumas atividades ocupacionais, como marinheiros, profissionais de construção, indústria e operadores de maquinário.
O gastrocnêmio é o músculo da panturrilha com maior risco de lesão porque cruza duas articulações (o joelho e o tornozelo) e tem alta densidade de fibras do tipo II (contração rápida), enquanto o músculo solear cruza apenas o tornozelo e tem predomínio de fibras do tipo I (contração lenta), embora não seja infrequente o acometimento concomitante de ambos os músculos nas lesões por estiramento. Porém, como o gastrocnêmio é mais superficial, o diagnóstico das lesões pela ultrassonografia é mais fácil, e com isso alterações no músculo sóleo, que tem localização mais profunda, podem passar despercebidas, o que pode fazer com que a sua real incidência seja subestimada. Além disso, dependendo do esporte, a lesão do solear pode ser mais frequente em comparação com o gastrocnêmio medial.
As lesões isoladas do sóleo se manifestam clinicamente com dor progressiva e impotência funcional leve a moderada, o que pode sugerir uma simples contratura. Já quando há associação com lesão do gastrocnêmio medial a dor costuma ser imediata e a impotência funcional é mais pronunciada.
Uma característica das lesões do sóleo é a persistência da limitação funcional por semanas a meses, o que pode ser explicada pela retomada muito precoce das atividades esportivas, uma vez que grande parte dessas lesões são subdiagnosticadas. Diferentemente das lesões do gastrocnêmio medial, dificilmente as lesões por estiramento do sóleo são acompanhadas de hematoma significativo, embora possa cursar com tromboflebite das veias da perna, que devem ser sistematicamente examinadas.
A classificação mais simples divide os estiramentos musculares em leves, moderados e graves:
Grau I (leve) – edema sem descontinuidade de fibras, podendo ter pequena quantidade de líquido perimuscular.
Grau II (moderado) – lesão de algumas fibras tendínea, da junção miotendínea, da fáscia, aponeurose e/ou das fibras musculares; tipicamente é associada a hematoma na junção miotendínea.
Grau III (grave) – rotura completa do tendão ou da junção miotendínea, com descontinuidade de todas as fibras, com ou sem retração associada.
Entretanto, essa classificação é muito simplista e insuficiente para determinar o prognóstico e tempo de retorno ao esporte ou ao trabalho. O termo “lesão parcial”, característica do grau II, além de ambíguo, não descreve apropriadamente as diferentes formas de acometimento da unidade miotendínea.
As lesões musculares por estiramento ocorrem em locais característicos da unidade miotendínea que são inerentes aos sítios de maior fraqueza. Em 2014 Pollock et al. detalharam melhor o envolvimento do tecido conectivo relacionado aos músculos (perimísio, aponeurose ou tendão), subdividindo o acometimento em tendíneo, mioaponeurótico e miofascial, e a BAMIC (British Athletics Muscle Injury Classification) tornou-se uma das classificações mais aceitas e utilizadas na descrição das lesões miotendíneas por levar em consideração a biomecânica na transmissão da força. As CLASSIFICAÇÕES DAS LESÕES MUSCULARES estão resumidas na página CLASSIFICAÇÕES / MÚSCULO.
Entretanto, esta e diversas outras classificações, foram descritas baseadas no modelo das lesões dos isquiotibiais, um dos principais grupos musculares acometidos nos estiramentos dos jogadores de futebol de elite.
O conhecimento das diferenças anatômicas entre os músculos ajuda a entender melhor o comportamento e aspecto das lesões por estiramento nos exames de imagem.
O estiramento do sóleo costuma ocorrer com o joelho em flexão, e pode envolver as junções mioaponeuróticas proximais medial e/ou lateral, as junções mioaponeuróticas e miotendíneas distais (aponeurose central), a junção miofascial ou as fibras musculares e é importante a sua correta descrição.
Diagnósticos diferenciais:
Rotura do tendão de Aquiles
Rotura de cisto de Baker
Encarceramento da artéria poplítea
Trombose venosa profunda
Lesão de outros músculos do compartimento posterior (gastrocnêmio, tibial posterior, flexor longo dos dedos e do hálux)
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Leitura sugerida:
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Kimura N, Kato K, Anetai H, Kawasaki Y, Miyaki T, Kudoh H, Sakai T, Ichimura K. Anatomical study of the soleus: Application to improved imaging diagnoses. Clin Anat. 2021 Oct;34(7):991-1001. doi: 10.1002/ca.23667.
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