Adolescente do sexo feminino de 14 anos, com dor e impotência funcional após trauma torcional durante ginástica artística. Solicitada ressonância magnética (RM) do tornozelo:
Figura 1 (a-d): Imagens consecutivas de RM no plano coronal (de anterior para posterior) na ponderação T2 com supressão de gordura.
Figura 2 (a-f): Imagens consecutivas de RM no plano transversal (de superior para inferior) na ponderação DP com (2a-c) e sem (2d-f) supressão de gordura.
Figura 3 (a-f): Imagens consecutivas de RM no plano sagital na ponderação T1 (3a-c) e T2 com supressão de gordura (3d-f).
Descrição dos achados
Figura 1 (a-d)’: Imagens consecutivas de RM no plano coronal (de anterior para posterior) na ponderação T2 com supressão de gordura mostrando traço de fratura vertical na epífise tibial (setas amarelas) e pequeno alargamento da porção lateral da fise com hipersinal de permeio (setas vermelhas) e extenso edema ósseo na tíbia distal (setas azuis). Note a porção medial da fise normal para comparação (pontas de seta brancas).
Figura 2 (a-f)’: Imagens consecutivas de RM no plano transversal (de superior para inferior) na ponderação DP com (2a-c’) e sem (2d-f’) supressão de gordura mostrando o edema ósseo na tíbia distal (seta azul), o traço de fratura epifisário (setas amarelas) e traço de fratura posterior no plano coronal (setas laranjas). A combinação dos traços de fratura no plano transversal (linhas tracejadas brancas) se assemelha à logomarca da Mercedes-Benz (imagem à direita).
Figura 3 (a-f)’: Imagens consecutivas de RM no plano sagital na ponderação T1 (3a-c’) e T2 com supressão de gordura (3d-f’) mostrando o edema ósseo na tíbia distal (setas azuis), o traço de fratura epifisário (setas amarelas) e traço oblíquo de fratura posterior no plano coronal (setas laranjas). Na ponderação T1 só é possível identificar pequeno alargamento da fise (setas amarelas escuras), sendo a fratura mais bem identificada na sequência sensível a líquido (setas vermelhas). Note o derrame articular tibiotalar heterogêneo (pontas de seta rosa) por hemartrose, achado comum nas fraturas articulares.
Exame de tomografia computadorizada (TC) de controle, mostrando a fratura em consolidação:
Figura 4 (a-c): Reconstruções tomográficas com a técnica MPR nos planos coronal (4a), transversal (4b) e sagital (4c) mostrando o processo de consolidação da fratura (setas brancas).
Discussão:
Fraturas na tíbia distal correspondem a 4% das lesões no tornozelo e constituem cerca de 11% das lesões epifisárias.
As fraturas articulares típicas da tíbia distal na adolescência são as fraturas triplanar e de Tillaux, epônimo da fratura da epífise anterolateral, abordada no CASO DO MÊS DE SETEMBRO/22. Essas fraturas são conhecidas como fraturas transicionais, porque ocorrem quando a fise está parcialmente aberta. O processo de fusão da placa fisária da tíbia distal costuma durar de 12 a 18 meses, começando a fechar no terço médio, passando depois para a porção anteromedial, em seguida para a porção posteromedial, com a porção lateral fechando mais tardiamente, geralmente começando posteriormente e progredindo anteriormente (figura 5). A fise está ossificada usualmente entre 12 e 15 anos e completamente unida à diáfise em torno dos 18 anos de idade.
Figura 5 (a-b): Representação esquemática do processo de fechamento (fusão) da placa fisária da tíbia distal nos planos coronal (5a) e transversal (5b) mostrando que o processo se inicia a partir dos 12 anos de idade no terço médio/posterior se estendendo inicialmente medialmente, depois progredindo lateralmente, sendo a porção anterolateral a última porção a fusionar.
A fratura triplanar corresponde a 5 a 15% das fraturas do tornozelo pediátrico e acomete adolescentes ou crianças dos 10 aos 17 anos em que a placa de crescimento está começando a fechar, ocorrendo um pouco mais precocemente em relação à fratura de Tillaux (média de 13 anos), sendo também mais comum em meninos, embora a maior participação das meninas em esportes tenha aumentado sua incidência nos últimos anos.
O termo fratura triplanar é decorrente da fratura classicamente acometer três planos ortogonais (figura 6):
Plano sagital – fratura vertical na porção anterolateral da epífise, semelhante à fratura de Tillaux, identificada nas radiografias em AP (anteroposterior) ou na tomografia computadorizada (TC) ou RM no plano coronal. É o plano da fratura na região epifisária.
Plano axial – fratura horizontal levando à separação da fise, identificada nas radiografias em perfil ou na tomografia computadorizada (TC) ou RM nos planos coronal e sagital. É o plano da fratura na placa fisária.
Plano coronal – fratura vertical oblíqua na porção posterior da tíbia, identificada nas radiografias em perfil ou na TC e RM no plano sagital. No plano transversal não se identifica o trajeto oblíquo, mas é possível identificar o traço coronal posterior. É o plano da fratura na região metafisária. Praticamente todas as fraturas do maléolo posterior da tíbia são decorrentes de trauma rotacional, que pode tanto ser em supinação e rotação externa, quanto pronação e rotação externa.
Figura 6: Representação esquemática dos planos da fratura triplanar em relação aos planos ortogonais do corpo (imagem à esquerda). A fratura no plano sagital aparece como um traço vertical epifisário (em vermelho), a fratura no plano transversal aparece como um afastamento da porção anterolateral da fise (em verde), semelhante à fratura de Tillaux, e a fratura no plano coronal é vista como um traço oblíquo no maléolo posterior da tíbia (em azul), melhor caracterizado no plano sagital.
O mecanismo do trauma é semelhante ao da fratura de Tillaux, decorrente de trauma torcional em supinação e rotação externa, sendo considerado um trauma de baixa energia. Dependendo do grau de adução a fratura pode ter localização mais medial.
Fratura na fíbula ocorre em cerca de 50% dos casos e tipicamente é uma fratura espiral proximal à fise.
Figura 7: Radiografia do tornozelo de outro paciente na incidência de Mortise mostrando os componentes vertical (seta amarela) e horizontal (seta vermelha) da fratura triplanar, nesse caso associada a fratura em espiral na fíbula.
O paciente costuma referir dor intensa e dificuldade de sustentar o peso no lado do pé acometido.
Ao exame físico é comum a presença de edema e dor local. Nos casos mais graves pode ser observada deformidade.
O principal diagnóstico diferencial da fratura triplanar é a fratura de Tillaux, sendo ambas os únicos padrões de fratura na tíbia distal comumente enco
ntrados em adolescentes. As fraturas triplanar e de Tillaux são denominadas por alguns autores como fraturas de transição, já que acometem a camada germinativa da placa de crescimento parcialmente fusionada. A extensão da fratura para a região metafisária no plano coronal (avaliada na radiografia em perfil ou no plano sagital) é o que distingue a fratura triplanar da fratura de Tillaux. A fratura triplanar aparece como uma fratura tipo Salter-Harris III na incidência AP e tipo II no perfil, enquanto a fratura de Tillaux aparece como Salter-Harris tipo III em ambas as incidências (figura 8).
Figura 8 (a-d): Reconstrução tomográfica da tíbia distal com a técnica MPR nos planos coronal (8a e 8b) e sagital (8c e 8d) mostrando algumas diferenças entre as fraturas de Tillaux à esquerda e triplanar à direita) de pacientes distintos. No plano coronal, os fragmentos das fraturas de Tillaux (seta branca) e triplanar (seta vermelha) parecem semelhantes, na porção lateral da epífise. Mas, no plano sagital, na fratura de Tillaux é identificado apenas o fragmento epifisário anterolateral destacado (seta verde), enquanto na fratura triplanar há acometimento também da região metafisária posterior (seta laranja).
Entretanto, existe controvérsia na aplicação da classificação de Salter-Harris na fratura triplanar, com alguns autores considerando a fratura triplanar como Salter-Harris tipo IV. Isso ocorre porque, dependendo da incidência, a fratura triplanar pode parecer uma fratura do tipo II, III ou IV (figura 9).
Figura 9: Representação esquemática das fraturas do tipo II, III e IV da classificação de Salter-Harris: no tipo II há fratura através da placa fisária com extensão metafisária (acima da fise), no tipo III há fratura através da fise com extensão à superfície articular com acometimento da epífise e no tipo IV a fratura estende-se da superfície articular até a metáfise, atravessando a epífise e a placa fisária.
Por isso, enquanto diversos autores afirmam que a fratura triplanar seria tipo IV de Salter-Harris, outros que seria uma combinação de tipos II e III ou da fratura de Tillaux com uma fratura tipo III de Salter-Harris.
Avaliação por imagem
A avaliação inicial das fraturas do tornozelo é radiográfica, sendo recomendada a realização das incidências anteroposterior (AP), perfil (lateral) e na incidência de Mortise. A incidência de Mortise é um AP realizado com a rotação interna do pé a 15-25° (rodar o pé até que o maléolo lateral esteja na mesma altura do maléolo medial). Nessa incidência é possível identificar os espaços articulares medial e lateral, enquanto que no AP convencional há sobreposição do tálus com parte do maléolo lateral, obscurecendo a porção lateral da articulação (figura 10).
Figura 10 (a-c): Incidências radiográficas do tornozelo: AP (10a), onde a porção lateral da tíbia fica projetada sobre parte da fíbula (seta amarela), Mortise (10b), em que a rotação interna do pé permite a visualização da porção lateral da articulação (seta branca) e perfil (10c), onde é possível identificar a posição mais dorsal da fíbula (seta azul).
O perfil é fundamental principalmente para a identificação da fratura metafisária posterior e a incidência de Mortise para avaliação do grau de deslocamento. No perfil, a fíbula normalmente fica sobreposta na metade posterior da tíbia e do tálus.
A tomografia computadorizada é o exame de escolha, sendo mais sensível que as radiografias, sobretudo para estimar o grau de diastase, deslocamento dos fragmentos e a congruência articular. Como o paciente costuma apresentar muita dor, o posicionamento radiográfico nem sempre é o ideal, dificultando a identificação de algumas fraturas. Na TC podemos também identificar o sinal da Mercedes-Benz (figura 11).
Figura 11: Reconstrução tomográfica da tíbia distal de outro paciente com a técnica MPR no plano transversal, mostrando o sinal da Mercedes-Benz.
A RM não é utilizada de rotina, sendo solicitada na suspeita de rotura ligamentar ou lesão osteocondral.
O tratamento da fratura triplanar costuma ser conservador, com redução e imobilização, sendo to tratamento cirúrgico considerado nos deslocamentos de mais de 2 mm.
As complicações mais comuns da fratura triplanar são:
Alteração no crescimento do osso, que ocorre em 7 a 21% dos casos, sendo mais frequente nas lesões que ocorrem em pronação-abdução em comparação com as decorrentes do trauma em supinação-rotação externa. É importante acompanhar com atenção principalmente os pacientes que ainda possuem mais de 2 anos de crescimento.
Dor e degeneração articular, principalmente nos casos em que se observa degrau articular.
Leitura sugerida
Ayas MS, Kalkışım M, Turgut MC, Dincer R, Aslan O, Öner K, Köse A. Analysis of Clinical Outcomes in Pediatric Distal Tibia Triplanar Fractures Treated Surgically and Conservatively. Cureus. 2021 Dec 26;13(12):e20723. doi: 10.7759/cureus.20723.
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