As provas têm um papel fundamental no ensino tradicional, tanto pelo seu caráter avaliativo, de saber o quanto o aluno realmente está aprendendo e se a estratégia de ensino está funcionando, como pela função de motivar o aluno a estudar. Como passamos décadas sendo avaliados por meio de provas, seja na escola, vestibular, residência ou em concursos, acabamos internalizando esse modelo e, sem perceber, usamos a mesma construção de pensamento na confecção dos laudos radiológicos.
O laudo radiológico é um documento formal que transcreve, em termos técnicos, o resultado dos exames realizados. Portanto, devemos sempre usar como referência as diretrizes recomendadas para a redação de laudos e pareceres técnicos. O problema é que nem sempre é fácil essa “virada de chave”, já que passamos boa parte da vida escrevendo como alunos e precisamos de repente escrever como peritos, palavra que carrega um peso muito maior. A questão é que, apesar de no fundo nos sentirmos como eternos alunos – o que é uma coisa boa, já que o aprendizado na medicina é constante e sempre estamos funcionando como alunos ao nos atualizarmos assistindo aulas e palestras e participando de mentorias, ao emitir um laudo, independente do seu grau de experiência e confiança, estamos agindo como peritos.
Logo, um radiologista é um perito assim que termina sua residência ou pós-graduação. Embora sejamos alunos no sentido de estarmos constantemente aprendendo, ao emitirmos um laudo devemos raciocinar como peritos, deixando para trás aqueles artifícios usados na escola, o que faz muita diferença no resultado final do laudo e também na revisão, porque nosso pensamento vai definir as escolhas das palavras e nosso comportamento como revisores.
Pensamento aluno – “Não posso errar e nem perder ponto”.
Na tentativa de “não errar” tendemos a colocar muitas possibilidades, pensando (muitas vezes inconscientemente) que “pelo menos uma delas vai estar certa, então não vou tirar zero”. Exemplos não faltam: “Ligamento cruzado anterior irregular e com sinal alterado, podendo representar alteração degenerativa, estiramento / lesão parcial” ou nos casos de menisco operado “menisco encurtado, irregular, com sinal alterado, podendo representar alteração pós-cirúrgica ou lesão nova / remanescente”. Qual a sua impressão de um médico que coloca na indicação clínica “suspeita de apendicite, colecistite, pancreatite, diverticulite, nefrolitíase”? Bom, é exatamente a mesma impressão que o radiologista causa quando coloca todas as possibilidades no laudo...
Pensamento perito – “Preciso indicar um caminho”
Esse ponto foi abordado no texto “Rachadura na parede”. Quando pedimos a opinião de um especialista é para decidirmos o que fazer em seguida. Claro que nem todos os diagnósticos são óbvios, mas na maioria das vezes ao juntarmos as informações, os aspectos da imagem e nosso conhecimento sobre o assunto podemos concluir ou, pelo menos, direcionar para a condição mais provável.
Pensamento aluno – “Se descrever tudo nos mínimos detalhes vou causar uma boa impressão”.
Quem nunca escreveu tudo o que podia em uma prova discursiva para ver se conseguia mais pontos? Alunos imaturos têm uma tendência a achar que quanto mais escreverem, maior a chance do professor simpatizar com seu esforço e “aproveitar alguma coisa”. E carregamos esse pensamento para o laudo, achando que se colocarmos como é o sinal em todas as sequências, dar várias medidas e todas as características visuais de uma alteração, o médico assistente vai aproveitar algum dado para chegar ao diagnóstico e achar que fomos cuidadosos e detalhistas. Só que não! Quem realmente sabe do assunto, seja o professor na escola ou médico solicitante, percebe que textão muitas vezes não passa de artifício usado para disfarçar que a pessoa não domina bem o assunto.
Pensamento perito – “Menos é mais, quanto mais objetivo e conciso melhor é o laudo”.
Esse ponto foi abordado no texto “Rachadura na parede”. Quando pedimos a opinião de um especialista é para decidirmos o que fazer em seguida. Claro que nem todos os diagnósticos são óbvios, mas na maioria das vezes ao juntarmos as informações, os aspectos da imagem e nosso conhecimento sobre o assunto podemos concluir ou, pelo menos, direcionar para a condição mais provável. Textos prolixos não só causam má impressão como podem confundir e aumentar a chance de erro.
Pensamento aluno – “Tenho meu estilo próprio”.
Redações são comuns na escola e em concursos e com isso nos acostumamos a pensar como escritores que têm a obrigação de desenvolver uma identidade e estilo próprios. No texto “Descrevendo um miojo” isso ficou bem claro – só de ler um parágrafo conseguimos adivinhar quem escreveu pelo estilo da escrita. Mas seria isso o que se espera de um laudo, adivinhar qual radiologista escreveu?
Pensamento perito – “O laudo é um texto técnico e formal”.
Uma das características dos laudos e pareceres técnicos é a impessoalidade. Isso significa que o interesse público está acima do interesse particular e que o texto deve ser isento da interferência da individualidade, mantendo linguagem informativa, objetiva e distanciada, se limitando a fatos e dados. Não podemos esquecer que ao emitirmos um laudo estamos como pessoa jurídica emitindo um documento em nome de uma instituição, seja pública ou privada, então devemos usar os padrões da escrita formal e manter uma padronização que represente a identidade da marca e não a nossa individualidade.
E como esse pensamento “aluno” se aplica à revisão dos laudos?
Como geralmente revisamos laudos dos nossos pares, que podem ter a mesma ou até mais experiência que nós, nos comportamos como aquele aluno que virou monitor ou acabou de virar professor, tendendo a ser mais condescendente nas correções das provas por manter uma identificação com o aluno e não sentindo que sabe tanto assim a mais que ele. Só com a experiência que os professores percebem que ser “bonzinho” demais na correção acaba prejudicando o aluno. O mesmo raciocínio se aplica à revisão dos laudos. Esse pensamento de aluno nos deixa constrangidos em mudar e acabamos tendendo a aproveitar ao máximo o que o colega escreveu, como se cada modificação significasse que ele “perderia ponto”. Revisão de laudo não é correção de prova, aproveitar demais significa que não estamos revisando com senso crítico adequado. Além das questões financeiras, um dos fatores que está fazendo a revisão ser extinta na radiologia é esse pensamento de "aproveitar", como se a cada modificação a "nota" do laudo diminuísse,em detrimento do objetivo de "melhorar", visando a obtenção de um laudo mais claro e preciso para o médico assistente e, principalmente, com menos erros.
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