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Tendinopatia cálcica com migração intra-óssea

História clínica

 

Homem, 58 anos, com dor intensa no ombro direito há 1 mês, sem história de trauma. Solicitada ressonância magnética (RM) do ombro:


Figura 1 (a-h): Imagens consecutivas de RM no plano transversal nas ponderações DP com supressão de gordura (1a-d) e T1 (1e-h).


Figura 2 (a-h): Imagens consecutivas de RM no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (2a-d) e T1 (2e-h).


Figura 3 (a-d): Imagens consecutivas de RM no plano sagital nas ponderações DP com supressão de gordura (3a-b) e T2 (3c-d).


Figura 4: Imagem de RM no plano sagital na ponderação T2.


O paciente refere ter realizado RM dois anos atrás e foi solicitado que levasse o exame

para comparação:


Figura 5 (a-b): Imagens da RM de 2 anos atrás no plano transversal na ponderação DP com supressão de gordura.


Figura 6 (a-b): Imagens da RM de 2 anos atrás no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (6a) e T1 (6b).


Figura 7 (a-b): Imagens da RM de 2 anos atrás no plano sagital nas ponderações DP com supressão de gordura (7a) e T1 (7b).


Figura 8: Imagem da RM de 2 anos atrás no plano sagital na ponderação T2.


Descrição dos achados


Figura 1 (a-h)’: Imagens de RM no plano transversal nas ponderações DP com supressão de gordura (1a-d)’ e T1 (1e-h)’ mostrando lesão na cabeça umeral heterogênea na ponderação DP com supressão de gordura (setas amarelas) e com sinal predominantemente reduzido na ponderação T1 (setas brancas), circundada por edema ósseo melhor identificado na sequência sensível a líquido (setas vermelhas). Foi encontrado, como achado incidental, lipoma intramuscular na porção posterior do deltoide, que pelo conteúdo gorduroso apresenta ausência de sinal na sequência com supressão de gordura (setas azuis) e alto sinal em T1 (setas verdes).


Figura 2 (a-h)’: Imagens consecutivas de RM no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (2a-d)’ e T1 (2e-h)’ mostrando a lesão na cabeça umeral heterogênea na ponderação T2 com supressão de gordura (setas amarelas) e com sinal predominantemente reduzido na ponderação T1 (setas brancas), circundada por edema ósseo melhor identificado na sequência sensível a líquido (setas vermelhas). Há, em associação, distensão da bursa subacromial/deltoidea (setas azuis) e o tendão supraespinhal apresenta sinal heterogêneo com focos de baixo sinal de permeio (setas laranjas).


Figura 3 (a-d)’: Imagens consecutivas de RM no plano sagital nas ponderações DP com supressão de gordura (3a-b)’ e T2 (3c-d)’ mostrando a lesão na cabeça umeral heterogênea na ponderação DP com supressão de gordura (setas amarelas) e com sinal predominantemente reduzido na ponderação T1 (setas brancas), circundada por edema ósseo melhor identificado na sequência sensível a líquido (setas vermelhas) associada a distensão da bursa subacromial/deltoidea (setas azuis) e heterogeneidade do sinal do tendão supraespinhal com focos de baixo sinal de permeio (setas laranjas).


Figura 4’: Imagem de RM no plano sagital na ponderação T2 evidencia o lipoma intramuscular na porção posterior do deltoide (seta verde) que pelo conteúdo gorduroso apresenta sinal alto semelhante ao subcutâneo na sequência T2 sem supressão de gordura.


Figura 5 (a-b)’: Imagens da RM de 2 anos atrás no plano transversal na ponderação DP com supressão de gordura mostrando imagem de marcado baixo sinal (setas laranjas) compatível com calcificação na inserção do supraespinhal e fibras conjuntas com o infraespinhal associada a lâmina líquida na bursa subacromial/deltoidea (setas azuis).


Figura 6 (a-b)’: Imagens da RM de 2 anos atrás no plano coronal nas ponderações T2 com supressão de gordura (6a)’ e T1 (6b)’ mostrando imagem de marcado baixo sinal (setas laranjas) compatível com calcificação de permeio às fibras distais do supraespinhal.


Figura 7 (a-b)’: Imagens da RM de 2 anos atrás no plano sagital nas ponderações DP com supressão de gordura (7a)’ e T1 (7b)’ mostrando imagem de marcado baixo sinal (setas laranjas) compatível com calcificação na inserção do supraespinhal e fibras conjuntas com o infraespinhal.


Figura 8’: Imagem da RM de 2 anos atrás no plano sagital na ponderação T2 demonstra que o lipoma intramuscular na porção posterior do deltoide (seta verde) não sofreu alteração evolutiva expressiva.


Discussão


A tendinopatia cálcica é causada pelo depósito de hidroxiapatita de cálcio na forma cristalina ou amorfa nos tendões ou tecidos sinoviais, sendo a localização mais comum os tendões do manguito rotador. As estruturas adjacentes, como o osso, bursa e cápsula articular podem estar envolvidos.

 

A etiologia ainda não é totalmente compreendida, com diversas hipóteses sugerindo causa degenerativa, reativa (mediada por células), trauma repetitivo, necrose ou ossificação endocondral, porém nenhuma é completamente satisfatória. Estudos recentes consideram que a causa da tendinopatia cálcica poderia ser uma falência na regeneração tendínea, em que no processo da tendinopatia há acúmulo de proteoglicanas, depósito de lipídeos e calcificação, com diferenciação celular aberrante na tentativa de reparo celular sob carga mecânica excessiva, onde as células tronco se diferenciam em condrócitos ou osteoblastos em vez de se diferenciar em tenócitos, resultando em metaplasia fibrocartilaginosa com formação de depósitos cálcicos intratendíneos.

 

A tendinopatia cálcica é uma causa frequente de dor (aguda ou crônica) e limitação funcional, com prevalência geral na população adulta estimada em 2,7 a 10%, sendo que, destes, aproximadamente 50% se tornarão sintomáticos e cerca de 10 a 25% apresentarão doença bilateral.

Geralmente acomete pessoas com idade entre 30 a 60 anos, com pico de incidência entre a 3ª e 5ª décadas, e é mais comum em mulheres (2 a 4:1). Como vários desses estudos foram realizados com o uso de radiografias, estima-se que a real incidência da tendinopatia cálcica é maior do que se pensava, conforme alguns trabalhos mais recentes com equipamentos mais sensíveis, em que foram detectadas calcificações no manguito rotador em mais de 24% das mulheres.

 

O ombro é o local mais acometido, principalmente o tendão supraespinhal (50 a 90%), seguido pelo infraespinhal (15 a 50%) e subescapular (5 a 33%), com acometimento multifocal em cerca de 8 a 28% dos casos. Entretanto, a tendinopatia cálcica pode ocorrer em qualquer local do corpo, incluindo a coluna vertebral. Existe controvérsia na literatura em relação à real prevalência da tendinopatia cálcica de acordo com as articulações, sendo o mais aceito que, depois do ombro, as localizações mais frequentes são o quadril, cotovelo, punho e joelho. A figura 9 ilustra os locais e tendões mais acometidos.

Figura 9: Representação esquemática dos locais e tendões mais acometidos na tendinopatia cálcica.


É controverso se o tamanho da calcificação tem relação com os sintomas, com alguns trabalhos referindo que os sintomas ocorrem mais frequentemente com calcificações > 1,5 cm e que calcificações < 1 cm tendem a ser assintomáticas.

 

Existe correlação entre a tendinopatia cálcica e pessoas que necessitam posicionar os braços em rotação interna e leve abdução nas atividades ocupacionais, como trabalhadores de escritório e linha de produção, caixas e alfaiates. Uma das explicações seria a de que na rotação interna e leve abdução há contração dos músculos do manguito rotador, tornando algumas áreas (como a zona crítica do tendão supraespinhal) mais susceptíveis a um estado isquêmico. Há também maior incidência de tendinopatia cálcica em diabéticos, com mais de 30% dos diabéticos insulino-dependentes apresentando calcificações tendíneas.

 

Foram descritas diversas fases que representariam o ciclo natural da tendinopatia cálcica, que costuma ocorrer com a maioria dos pacientes (quadro 1), embora nem todos apresentem rigorosamente esse padrão, podendo permanecer em alguma fase.


Quadro 1: Resumo das diversas fases da tendinopatia cálcica.


Fase pré-cálcica – caracterizada pela metaplasia fibrocartilaginosa que poderia ser uma reação aberrante às mudanças metabólicas e condições mecânicas às quais o tendão seria submetido.

 

Fase cálcica – subdividida em três etapas:

  • Formação: etapa em que o depósito cálcico é formado.

  • Repouso: etapa em que existe depósito cálcico identificável assintomático. Muitos indivíduos permanecem apenas nesta fase, conhecida também como “fase silenciosa”.

  • Reabsorção: etapa em que há resposta celular para reabsorver os depósitos; costuma ser a fase mais sintomática devido à reação inflamatória que acompanha a remoção dos depósitos cálcicos.

 

Fase pós-cálcica – fase em que há melhora dos sintomas e do quadro inflamatório, podendo ocorrer o desaparecimento das calcificações.  

 

Fase de reparo – alguns autores consideram como parte da fase pós-cálcica, enquanto outros classificam como uma fase distinta em que tecido de granulação ocupa o espaço deixado pelos depósitos de cristais de hidroxiapatita. Eventualmente o tecido de reparação pode evoluir para uma cicatriz fibrótica.

 

Os depósitos cálcicos podem ser identificados nas radiografias do ombro (figura 10), sendo importante o reconhecimento de cada incidência já que cada tendão tem uma projeção anatômica diferente.


Figura 10 (a-b): Imagem de RM de outro paciente na ponderação T2 com supressão de gordura (10a) mostrando calcificação na transição dos tendões supra e infraespinhais (seta branca). É possível também identificar a calcificação (seta amarela) na radiografia na incidência anteroposterior em posição neutra (10b).


Para maiores detalhes veja na página Notas & Medidas / Ombro as projeções tendíneas no RX do ombro.




A tomografia computadorizada (TC) é superior ao RX e ajuda a confirmar a presença de calcificações, sendo particularmente importante nos casos em que os depósitos cálcicos são mais sutis e sem expressão na RM ou radiografias (figura 11), caracterizando melhor as fases da tendinopatia cálcica. A TC também ajuda no diagnóstico diferencial das erosões corticais no sítio de inserções musculares, nos entesófitos que podem mimetizar calcificação tendínea e nos casos de migração intra-óssea do material cálcico. Um achado característico na TC é o aspecto de “cauda de cometa” (figura 12), onde os depósitos cálcicos apresentam orientação longitudinal ao longo dos tendões acometidos.


Figura 11 (a-b): Imagens no plano transversal de RM na ponderação DP com supressão de gordura (11a) e de reconstrução tomográfica (11b) de outro paciente mostrando edema (seta amarela) nas partes moles adjacentes ao tubérculo menor do úmero (asteriscos vermelhos) e o tendão da cabeça longa do bíceps (seta rosa), melhor identificado nas imagens de RM. Na TC é possível identificar tênues calcificações de permeio às alterações inflamatórias (seta branca).


Figura 12 (a-b): Tomografia computadorizada no plano transversal (12a) de outro paciente mostrando calcificação no sentido longitudinal do tendão subescapular (seta branca), conhecida como sinal da “cauda do cometa”. Imagem de um cometa e sua cauda (12b) mostrando a semelhança com o padrão alongado da calcificação.


A ultrassonografia também é um bom método para identificar os depósitos cálcicos que, dependendo da fase da doença, se manifestam como imagens ecogênicas com sombra acústica variável em forma de arco ou de aspecto fragmentado/puntiforme, nodular ou cístico (parede ecogênica com porção interna apresentando tênues ecos), cujas características se correlacionam com o quadro clínico (quadro 2):


Quadro 2: Características ultrassonográficas das calcificações na tendinopatia cálcica.


As calcificações na ressonância magnética se manifestam como imagens de marcado baixo sinal em todas as sequências, conforme visto nas figuras 5 a 7, mas nem sempre são muito evidentes, por isso a sua análise isolada pode induzir a diagnósticos equivocados, como tumor, infecção e falsos positivos em que as fibras normais poupadas e o cabo rotador podem ser confundidos com depósitos cálcicos. Portanto, é fundamental nos casos duvidosos, sempre que disponível, a correlação com outros métodos de imagem e exames anteriores. A RM é particularmente útil para caracterizar melhor a fase da doença e as condições associadas, principalmente as alterações inflamatórias, padrão de migração e complicações.

 

Diferença entre ossificação e calcificação – a calcificação se refere a imagem mineralizada que na tomografia computadorizada apresenta densidade de cerca de 100 a 400 UH e na ressonância magnética costuma ter marcado baixo sinal homogêneo. Já a ossificação tem o padrão de osso maduro, com córtex externa apresentando > 1500 UH e padrão trabeculado interno com cerca de 700 UH. Na RM, se a ossificação for bem madura poderá apresentar as características de sinal da medula óssea (halo de baixo sinal e porção interna com sinal semelhante ao da gordura).

 

 

Condições associadas e complicações da tendinopatia cálcica:

  • Capsulite adesiva pode ocorrer de forma secundária nos pacientes com tendinopatia cálcica.

 

  • Extrusão sub-bursal do depósito cálcico (entre o tendão e a bursa adjacente), geralmente muito sintomática e com edema nos planos mioadiposos ao redor (figura 13).


Figura 13: Imagem de RM no plano coronal na ponderação T2 com supressão de gordura de outro paciente demonstrando calcificação alongada (seta amarela) entre o tendão supraespinhal (seta laranja) e a bursa subacromial/deltoidea com pequena quantidade de líquido (seta azul).


  • Extrusão intrabursal do depósito cálcico causando bursite microcristalina / cálcica (figura 14). A bursa pode apresentar conteúdo heterogêneo e parede espessada que se impregna intensamente pelo meio de contraste (figura 15), às vezes com nível líquido-cálcico, conhecido como “leite de cálcio” (figura 16).


Figura 14: Imagem de RM no plano coronal na ponderação T2 com supressão de gordura de outro paciente demonstrando o tendão supraespinhal heterogêneo (seta branca) por tendinopatia associada a distensão heterogênea da bursa subacromial/deltoidea (setas azuis) por extrusão intrabursal dos depósitos cálcicos. Nesse paciente há também migração intra-óssea dos depósitos cálcicos na cabeça umeral (seta amarela) com edema na medula óssea adjacente (seta vermelha).